Ou: como se contamina o mundo de amor?

Há algum tempo repassaram pelo facebook – daqueles fenômenos em que mais de 5 conhecidos repassam um mesmo texto e você para pra olhar: Pessoas com vidas interessantes não têm fricote. Elas trocam de cidade. Sentem-se em casa em qualquer lugar. Investem em projetos sem garantia. Interessam-se por gente que é o oposto delas. Pedem demissão sem ter outro emprego em vista. Aceitam um convite para fazer o que nunca fizeram. Estão dispostas a mudar de cor preferida, de prato predileto. Começam do zero inúmeras vezes. Não se assustam com a passagem do tempo. Sobem no palco, tosam o cabelo, fazem loucuras por amor e compram passagens só de ida…” Abaixo do texto grifado, ainda podia-se ler, “Para os rotuladores de plantão, um bando de inconsequentes. Ou artistas, o que dá no mesmo” – autoria de Martha Medeiros.

Todo mundo no facebook repassou dizendo: “isso, eu sou assim!” e eu pensei: “ou eu tenho muitos amigos artistas, ou, mesmo, o mundo tá mudando”. Acho que o mundo tá mudando.

Lembrei desse trecho/episódio porque vi, essa semana, uma palestra sobre a “mudança de valores na sociedade pós-moderna”, na Palas Athena – uma associação maravilhosa que faz a gente imaginar que um mundo melhor é possível e que a humanidade está caminhando. “Nós estamos nesse momento em que valores modernos continuam a ser oficiais mas perderam a sua força de atração.” O palestrante, Michel Maffesoli, um professor da Sorbonne de gravata borboleta, sorriso no rosto e incrível didática e reflexão (na França, em Paris, ele é diretor do Centro de Estudos sobre o Atual e o Cotidiano e do Centro de Pesquisa sobre o Imaginário). “O indivíduo (indivisível), na sociedade pós-moderna dá lugar à pessoa plural, com identificações múltiplas.” Explica bem a necessidade desesperada de afirmação de que, sim, mudamos de uma profissão para outra, de uma experiência para outra e estamos bem com isso – estamos em um momento de transição.

“Nós não vamos mais mobilizar a energia em torno da palavra trabalho, mas sim em torno da palavra criação. Na pós-modernidade, vamos retomar essa bagagem (o onírico, o lúdico, o imaginário, o festivo) e, como disse Nietzsche, fazer da vida uma obra de arte”. Voltei da palestra preenchida e interessada – desvendar mudanças é dessas satisfações que nos fazem perceber um pouco mais, e melhor, o que já intuíamos do mundo – tudo para, menos de hora depois, me deparar de novo, e infelizmente, com o facebook. Explodiram assuntos nesse mês na internet (ou estiveram escondidos pelas minhas escolhas de amigos, de grupos, pela minha leitura seletiva do mundo?). Defesa da redução da maioridade penal, situação de guerra entre PCC e PMs, extermínio nas periferias, gays equiparados a cabras e espinafre…

No caso específico – e especificamente recente – da nomeação pelo Grão Chanceler Dom Odilo Scherer da terceira colocada nas eleições a reitor da PUC-SP (minha casa por 4 anos de jornalismo, e antes, pelos 5 anos de psicologia da minha irmã), quebrando longa tradição democrática, não consegui sequer entender as reações. Tentei não ler os comentários nas matérias jornalísticas (o que já é de grande adianto), mas manifestações nas páginas de amigos (em comentários de desconhecidos próximos) não passam em branco. Lembraram-me o coronel Erasmo Dias, em vídeo sobre a invasão da PUC que comandou em 1977, esbravejando que os alunos eram “baderneiros”. O desconhecido próximo, para defender seu ponto de vista contra o processo democrático na Universidade – “E de onde surgiu a ideia estapafúrdia de que escola deve ser democrática?” – usou uma comparação sintomática (classificando-a como caso de estupidez): que ovelhas pudessem escolher seu pastor. Infeliz exemplo – excelente imagem.

Almeidinhas proliferam às vezes entre os mais conhecidos: um tio, um vizinho ou – para nossa indigesta surpresa – um colega de faculdade, sempre com comentários ferozes. Falam de tolerância com comentários intolerantes. Rebatem a boa educação defendendo a falta de democracia. Acham que o sonho não existe e tudo que não é útil deve ser deixado pra lá. Seguem, ironicamente e sem perceber, como ovelhas de só um rebanho.

Almeidinhas detestam as novas configurações da pós-modernidade, acham que o autoritarismo (esse vertical: um manda outro obedece) é a base das boas relações no mundo. Mas os comentários de conservadores a ultra conservadores revelam mais que ideologia (antes fosse, eu diria!): são manifestações do mais puro medo. Medo das configurações que despontaram (e que nem por serem novas são ruins). É preciso que se note – estamos em um momento de transição. E mudanças geram reações violentas – por parte de quem não quer, ou acha que não deveria mudar. Retomo o professor Maffesoli “o fim de um mundo não significa o fim do mundo”. Ou: como se contamina o mundo de amor?


Para entender a situação da PUC, sugiro: A Dom Odilo Scherer: Perplexidades | Jorge Claudio Ribeiro
Para entender a história das cabras: Veja que lixo! | Jean Wylys
E para entender tudo isso: “Direitos humanos para humanos direitos” | Matheus Pichonelli / Carta a um Almeidinha ressentido | Matheus Pichonelli