Roteiros e o mercado: uma análise jornalística

Há algum tempo que, quando digo que sou roteirista, as pessoas me respondem entusiasmadas: “está crescendo muito o mercado de roteiros, não é?”, “eu li que a produção aumentou muito, agora com a nova lei das TVs a cabo…” A princípio ponderava que não é bem assim, que de cara o que aumenta é a compra de filmes. De preferência comédias de grande público. Depois a procura a grandes produtoras (que já tinham um pé na produção independente, e uma porta de entrada nos canais). Depois por conteúdos que venham prontos, formatados e embalados. E só depois, talvez, com sorte, é que veremos uma valorização do roteirista em si. Com o tempo passei apenas a acenar com a cabeça, sem entrar em maiores discussões.

Essa semana a Folha Ilustrada publicou mais uma matéria sobre o tema, que suscitou em mim mais perplexidades. Com título otimista “Nova lei da TV paga aquece mercado para roteiristas no Brasil”, é um desfile de descabimentos e clichês para falar do mercado e do profissional de roteiros. No meio de obviedades e outras babaquices programadas, como “é essencial [para o roteirista] ser devorador de livros”, comenta que os roteiristas são profissionais cada vez mais cortejados (termo deles) pelos canais e faz um chamado àqueles dispostos a trabalhar. Para falar da valorização atual do mercado, cita a agenda cheia de Bráulio Mantovani e Jorge Furtado (nunca vi, por exemplo, procurarem a agenda de Niemeyer para saber como andava o mercado de arquitetura no Brasil).

É, uma vez mais, um reforço de que o mercado está em falta de roteiristas – principalmente os qualificados para a nova empreitada. É a típica visão que quando mencionada em discussões e conversas por aí normalmente vem acompanhada por um “há sim roteiristas. É que não há roteiristas bons.” Pois vos digo, e sem nenhum receio, há sim roteiristas: roteiristas bons, roteiristas ruins, roteiristas lotados de trabalho e outros esperando para começar. Como toda área, se for considerada como mercado e profissão. O que (ainda) não é.

O próprio Bráulio Mantovani, no bloco final, desmente a afirmação da matéria sobre a profissão: “’Tudo tem dois lados. Paga-se muito mal a roteiristas no cinema, principalmente quando se leva em conta o tempo de dedicação ao trabalho’, avalia ele. ‘Os roteiristas são obrigados a se envolver em vários projetos ao mesmo tempo e, se nenhum dá certo, você fica sem trabalho. Já aconteceu comigo.’” E, no último parágrafo (último mesmo, lá bem depois do intertítulo), tiveram coragem de publicar finalmente – em frase de Roberto d’Avila – “O que há agora é uma excitação grande no mercado, mas não vejo mudança de postura. Há muita produtora procurando projetos prontos e poucas investindo na formação de quadros”.

A lei muda o mercado sim, há mais produtoras interessadas e procurando conteúdos, e abre-se uma janela sem precedentes para valorizar o trabalho de roteirista no Brasil. Mas dar a entender que isso dá acesso a um reino encantado, em que todos os roteiristas terão emprego, sucesso e felicidade é, mais que uma ilusão, uma lenda (e muito bem contada). O que essa e outras matérias fazem é uma mistificação da profissão, que é justamente o que a profissão não precisa agora. Quando as afirmações finais da matéria chegarem ao título, poderemos dizer que, sim, o mercado para roteiristas mudou.

a Laura Barile que eu não poderia ter sido – e que não fui

Sempre achei que fossem poucas (pouquíssimas) as Lauras Barile no mundo. A mais conhecida é uma professora universitária na Università de Siena (faculdade de letras e filosofia). O nome dela foi mandado numa cápsula para o espaço, o que muito me lisonjeou.

Certa feita recebi um e-mail inteiro em italiano, pedindo com urgência minha foto para uma publicação. Respondi atentando para o fato de ser brasileira, embora Laura Barile, e fui tratada com toda delicadeza por ter desfeito o mal entendido. Azar. Perdi uma chance e tanto de ter uma foto minha em uma publicação na Itália.

Resolvi fuçar as Lauras no facebook. Exclusivamente Laura Barile, sem outro nome ou apelido, e só as que tivessem foto. Ao contrário do que eu pensava, há muitas. Vi uma Personal Trainer Owner of Laura’s BodyShaping e comecei a pensar em como podia ter sido minha vida.

Se não fosse eu, mas Laura Barile, pra começar eu seria italiana. Há Laura Barile em Fórmias, Giussano, Palermo… A que usa saia balonê vermelha tem dois gatinhos filhotes. A de Bari tem como perfil a foto de um beagle (sempre fui fascinada por beagles). Curte Isole Tremiti, vielas em flor e pessoas com fotos de cães.

Uma só é espanhola, trabalha no Standard Bank e tem um namorado parecido com o Javier Bardem. Só que feio. Lolly, de Palermo, está em um relacionamento enrolado. A do Okhlahoma está desanimada na foto, acompanhada por um namorado ainda mais desanimado que ela. Alguém comenta “you guys look happy together”. (o relacionamento começou só em novembro)

Com um cachorrinho branco escorrido chamado Jack e aparência feliz, uma delas é perturbadoramente parecida com a minha família. Outra só deixa vermos uma foto: “La mia splendida famiglia!!” (todos de óculos assim como eu). Uma criança de Quebec com pintura na testa anuncia o facebook da mãe – ou tia? – Laura. A adolescente é obcecada por Harry Styles e Justin Bieber. A criança, de Nápoles, faz o sinal de vitória com uma fatia de melancia na mão. A adulta de Nápoles fuma e tem uma tatuagem no ombro.

casou em outubro de 2009, casou em julho de 2010…

A Laura de Milão trabalha em um Hospital e acha que amar é viver. Também repassa mensagens sobre serenidade, e uma frase de Confucio que não entendi (italiano que sai da Mooca eu não intendo, bela!) “chi ascolta dimentica, chi vede ricorda, chi fa comprende (e impara)”. Foi a que eu mais gostei. Tem dois filhinhos e um mochilão.

Ou: como se contamina o mundo de amor?

Há algum tempo repassaram pelo facebook – daqueles fenômenos em que mais de 5 conhecidos repassam um mesmo texto e você para pra olhar: Pessoas com vidas interessantes não têm fricote. Elas trocam de cidade. Sentem-se em casa em qualquer lugar. Investem em projetos sem garantia. Interessam-se por gente que é o oposto delas. Pedem demissão sem ter outro emprego em vista. Aceitam um convite para fazer o que nunca fizeram. Estão dispostas a mudar de cor preferida, de prato predileto. Começam do zero inúmeras vezes. Não se assustam com a passagem do tempo. Sobem no palco, tosam o cabelo, fazem loucuras por amor e compram passagens só de ida…” Abaixo do texto grifado, ainda podia-se ler, “Para os rotuladores de plantão, um bando de inconsequentes. Ou artistas, o que dá no mesmo” – autoria de Martha Medeiros.

Todo mundo no facebook repassou dizendo: “isso, eu sou assim!” e eu pensei: “ou eu tenho muitos amigos artistas, ou, mesmo, o mundo tá mudando”. Acho que o mundo tá mudando.

Lembrei desse trecho/episódio porque vi, essa semana, uma palestra sobre a “mudança de valores na sociedade pós-moderna”, na Palas Athena – uma associação maravilhosa que faz a gente imaginar que um mundo melhor é possível e que a humanidade está caminhando. “Nós estamos nesse momento em que valores modernos continuam a ser oficiais mas perderam a sua força de atração.” O palestrante, Michel Maffesoli, um professor da Sorbonne de gravata borboleta, sorriso no rosto e incrível didática e reflexão (na França, em Paris, ele é diretor do Centro de Estudos sobre o Atual e o Cotidiano e do Centro de Pesquisa sobre o Imaginário). “O indivíduo (indivisível), na sociedade pós-moderna dá lugar à pessoa plural, com identificações múltiplas.” Explica bem a necessidade desesperada de afirmação de que, sim, mudamos de uma profissão para outra, de uma experiência para outra e estamos bem com isso – estamos em um momento de transição.

“Nós não vamos mais mobilizar a energia em torno da palavra trabalho, mas sim em torno da palavra criação. Na pós-modernidade, vamos retomar essa bagagem (o onírico, o lúdico, o imaginário, o festivo) e, como disse Nietzsche, fazer da vida uma obra de arte”. Voltei da palestra preenchida e interessada – desvendar mudanças é dessas satisfações que nos fazem perceber um pouco mais, e melhor, o que já intuíamos do mundo – tudo para, menos de hora depois, me deparar de novo, e infelizmente, com o facebook. Explodiram assuntos nesse mês na internet (ou estiveram escondidos pelas minhas escolhas de amigos, de grupos, pela minha leitura seletiva do mundo?). Defesa da redução da maioridade penal, situação de guerra entre PCC e PMs, extermínio nas periferias, gays equiparados a cabras e espinafre…

No caso específico – e especificamente recente – da nomeação pelo Grão Chanceler Dom Odilo Scherer da terceira colocada nas eleições a reitor da PUC-SP (minha casa por 4 anos de jornalismo, e antes, pelos 5 anos de psicologia da minha irmã), quebrando longa tradição democrática, não consegui sequer entender as reações. Tentei não ler os comentários nas matérias jornalísticas (o que já é de grande adianto), mas manifestações nas páginas de amigos (em comentários de desconhecidos próximos) não passam em branco. Lembraram-me o coronel Erasmo Dias, em vídeo sobre a invasão da PUC que comandou em 1977, esbravejando que os alunos eram “baderneiros”. O desconhecido próximo, para defender seu ponto de vista contra o processo democrático na Universidade – “E de onde surgiu a ideia estapafúrdia de que escola deve ser democrática?” – usou uma comparação sintomática (classificando-a como caso de estupidez): que ovelhas pudessem escolher seu pastor. Infeliz exemplo – excelente imagem.

Almeidinhas proliferam às vezes entre os mais conhecidos: um tio, um vizinho ou – para nossa indigesta surpresa – um colega de faculdade, sempre com comentários ferozes. Falam de tolerância com comentários intolerantes. Rebatem a boa educação defendendo a falta de democracia. Acham que o sonho não existe e tudo que não é útil deve ser deixado pra lá. Seguem, ironicamente e sem perceber, como ovelhas de só um rebanho.

Almeidinhas detestam as novas configurações da pós-modernidade, acham que o autoritarismo (esse vertical: um manda outro obedece) é a base das boas relações no mundo. Mas os comentários de conservadores a ultra conservadores revelam mais que ideologia (antes fosse, eu diria!): são manifestações do mais puro medo. Medo das configurações que despontaram (e que nem por serem novas são ruins). É preciso que se note – estamos em um momento de transição. E mudanças geram reações violentas – por parte de quem não quer, ou acha que não deveria mudar. Retomo o professor Maffesoli “o fim de um mundo não significa o fim do mundo”. Ou: como se contamina o mundo de amor?


Para entender a situação da PUC, sugiro: A Dom Odilo Scherer: Perplexidades | Jorge Claudio Ribeiro
Para entender a história das cabras: Veja que lixo! | Jean Wylys
E para entender tudo isso: “Direitos humanos para humanos direitos” | Matheus Pichonelli / Carta a um Almeidinha ressentido | Matheus Pichonelli

Ecos do oi oi oi

O facebook é uma bolha. Isso já desde as eleições presidenciais (quando minha timeline indicava vitória clara de Plínio de Arruda, detentor, ao final do processo, de apenas 1% dos votos do Brasil) que eu já sabia. Com o final da novela da Globo não foi diferente. Dividiram-se os comentários ao vivo: “todo mundo no meu facebook só fala da novela!” No meu, particularmente – e apesar de trabalhar em uma área próxima de TV – imperavam os comentários contra quem perdia tempo falando sobre (ou pior de tudo: vendo) a novela. Ou: gente assumidamente perdendo tempo pra falar sobre quem perde tempo assistindo à saga de Carminha.

Uma casa de shows de São Paulo publicou um comentário engraçadinho “vão ver o final da novela?”, acompanhando a divulgação de uma apresentação. O conceito dessa casa são shows de qualidade não menos que excelente para um público pequeno – ou seja, justamente um lugar que não se pauta pelo que está na mídia, e que tem, portanto, uma visão muito mais abrangente de cultura. Nos comentários, responderam “me recuso a acreditar que alguém que frequenta a casa curta uma ‘Carminha’!”. Me recuso a acreditar que alguém que frequenta a casa tenha uma visão tão limitadíssima de cultura.

– salvai-nos, ó artistas, da nossa elite.

Nunca fui fã de novela. Assisti exclusivamente a Anjo Mau (a mais nova, duas vezes com o Vale a Pena Ver de Novo), Laços de Família (duas vezes) e Pantanal (só na reprise). Fiz um curso de telenovela há pouco tempo e foi um massacre anunciado: passei vergonha por não saber a diferença entre os autores (ou mesmo os autores). Mas sempre tive especial curiosidade como produto cultural – o que atinge mais gente, com mais penetração.

“Avenida Brasil” entrou nessa (pequena) listagem. Sem paciência para assistir aos episódios com constância (que se desenvolviam em pequenos movimentos) acompanhei a história consultando a amiga com quem divido casa, e me propus a assistir assiduamente às duas últimas semanas. E não me arrependi.

Para além de ser o nosso maior produto cultural, essa novela trazia importantes renovações: a redenção da vilã é uma delas (as relações na novela foram menos maniqueístas que na nossa eleição municipal). O núcleo em bairro humilde protagonizando a história. Humor em quase todos os núcleos (um humor muitas vezes descompromissado e refinado). E uma direção primorosa – ouso dizer, na minha pouca experiência com novela – como nunca se viu.

Adriana Esteves estava excepcional – mas não só ela. A direção de atores, que não costuma ser valorizada (aliás, nem no cinema), foi digna de nota. Ouvi de amigos, vi na tela e li em críticas posteriores: cinematografia invadindo a TV. Vi até cena sem fala – e com informação. Olhou pro iPhone, pra janela, pra panela no fogo, perdeu! Os aspectos de cinema condicionados à produção diária, é certo, mas aspectos cinematográficos… Se a novela perdeu dinâmica em seu enredo (há críticas de que sobraram lacunas na história), ganhou em cinematografia, e o final envolvendo o misterioso assassinato de Max teve cenas de tirar o fôlego.

Avanços como esses, no nosso maior produto cultural, passam ao largo de comentários como aquele. É preciso renovar a TV. Mas é preciso renovar a nossa visão da TV. Em uma prece consoante com os ecos do oioioi, faço minhas as palavras de Caetano “Santa Clara, padroeira da televisão, que a televisão não seja sempre vista como a montra condenada a fenestra sinistra, mas tomada pelo que ela é de poesia”.

A cena mais impressionante da minha vida (ou como se entregar ao mistério que é Deus)

1997 – Terceira série, foi-me dada a tarefa de tirar fotos de placas com emprego inadequado da crase. Saímos de casa, eu e meus pais, sem uma câmera. Reclamei. Chorei. Esperneei. No caminho de São Paulo a Atibaia, anotei os inúmeros erros num indigno bloquinho, à mão. Com crase. Segunda-feira: fui a única da classe a fazer o exercício.

No meio desse mês tive uma experiência dessas que nos trazem uma consciência superior das coisas, do mundo… Uma professora muito querida – e de literatura – foi convidada a falar em um evento de uma editora. A outra convidada: Lygia Fagundes Telles.

Aprendi metáfora com “Venha ver o pôr-do-sol e outros contos”, dela, na oitava série, coisa de que já não me lembrava. Metáfora é um tipo de aprendizado engraçado de explicar: não é como uma equação, que você aprende e sabe quando aprendeu, como aprendeu, e mais principalmente o que aprendeu. É quase uma equação da alma: uma vez aprendida passa misteriosamente a fazer parte de você.

Então eu tinha uma situação muito especial dentro dessa minha lembrança e constatação: tinha de um lado a Lygia Fagundes Telles, em pessoa, discursando sobre literatura e sua vocação, e de outro minha professora falando sobre subjetividade e inteligência literária dos alunos.

Lygia Fagundes Telles, formada em direito e educação física, é desses seres superiores que entendem que a vida é mais que a vida, que a realidade não é uma só e que somos compostos por tudo que fazemos com prazer. Sob o tema vago “inspiração literária” (e a bem da verdade não precisava ter tema algum), falou de sua vocação, numa dimensão muito interna, quase totalmente descolada de resultado, ou mesmo de talento. “Por que eu não fui bailarina? Por que eu não fui jurista, como minha mãe queria? Por que eu não fui pianista, como a minha mãe? Por que eu segui na minha vocação. E acertei” – dizia com um gesto enérgico e firme no ar.

Com ares de tranquilidade e força, contou que vem de uma linhagem de avô rico, pai pobre e neto miserável. Sendo ela própria o neto. “Meu avô era dono da rua Fagundes na Liberdade, tudo muito chique, meu pai, era jogador. Todo dia chegava em casa falando: hoje perdemos, mas amanhã a gente ganha.” Uma coisa terrível, que ela contou com um sorriso: “Não é maravilhoso isso?” E repetia, risonha ante a plateia apreensiva “hoje perdemos, mas amanhã a gente ganha. Isso eu levei pra vida.”

Do fundo do âmago, expondo-se inteiramente a nossos olhos nus, dizia enérgica e repetidas vezes: “eu acertei na minha vocação.” Deslumbrantemente passou a falar sobre Deus. “Deus é uma dúvida. Deus é um mistério, a vida é um mistério e estou vivendo esse mistério da melhor forma que posso.”

1998 – Tarefas de casa: tropismo e decomposição. Tropismo é o movimento de curvatura feito pelas plantas orientado em relação a um agente externo. Em biologia e ecologia, decomposição é o processo de transformação da matéria orgânica em minerais. Esqueci de fazer. No fim de semana antes da entrega, minha mãe cortou um buraco numa caixa de papelão e puxou uma planta para fora; depois colocou um ossinho finíssimo de galinha no vinagre. Ele rapidamente amoleceu.

Nessas últimas eleições fui submetida a uma pesquisa de intenção de voto – um privilégio, tendo em vista a amostragem utilizada (coisa de 1204 para os mais de oito milhões aptos a votarem em São Paulo). Foi tudo fácil, em termos políticos. Respostas pensadas e repensadas, previsões de segundo turno absurdas para medir meu índice de rejeição a cada candidato negado, previsões de supostos apoios de um ou outro partido. Respondia a tudo com uma habilidade e rapidez impressentida. Perguntou minha religião e eu disse nenhuma. Perguntou se acredito em Deus. E eu… Balbuciei até que o pesquisador marcou ateia e prosseguiu. Pesquisa eleitoral: mesmo com a profusão de candidatos em São Paulo, a pergunta que me deixou mais em dúvida foi um inesperado: você acredita em Deus?

1999 – A cena mais impressionante da minha vida. Sala de aula, quinta série. A professora de geografia propôs para nós uma questão. À primeira alternativa (eu julgava certa), levantei a mão. Outros poucos que iriam responder baixaram o braço ao ver que a grande maioria da classe não escolheria a primeira. A sala já se alvoroçava em um “errrrrhhhh” tímido mas sonoro, enquanto eu mantinha, solitária e impávida, minha mão no ar. À segunda alternativa, o resto da sala inteira levantou a mão, tranquilizados pelo anonimato em sua escolha. A resposta certa era a minha (seguiu-se caloroso silêncio). Ao final da aula, a professora me chamou para conversar. Elogiou-me não pela resposta certa, mas por ter mantido minha mão erguida. O resto da minha vida inteira foi uma tentativa desesperada de resgatar essa confiança.

À oitava série, em 2002, quando aprendia metáfora, lancei essa para a minha professora de redação: “quando eu crescer eu quero ser cronista, você acha que eu consigo?” Não me lembrava mais disso quando nesse ano, passados dez anos da oitava série, decidi que escrevo. Não me lembrava mais disso, nem de ter aprendido metáforas.

Então eu tinha uma situação muito especial: de um lado minha professora querida de literatura falando sobre subjetividade, sobre inteligência literária, do outro Lygia Fagundes Telles, impondo-se sobre nós um mistério velado. A vida é viver esse mistério, é acertar na vocação.

Essa história toda me lembrou uma professora (outra, mas também de redação), a quem disse depois que eu saí do colégio: “sabe, eu quero mesmo ser cineasta” e ela prontamente respondeu “eu já sabia”. E eu pensei: “como, se eu não?”

A gente sabe. A gente sempre sabe.

Nota (pós texto) em caso de nova pesquisa eleitoral, ao ser perguntada se acredito em deus, responderei: vivo esse mistério que é Deus (não sei se é uma questão de acreditar).

outubro/2012

Carnaval, futebol… estereótipos de Brasil

texto originalmente publicado no blog 2 Dedos de Conversa, da Helena Araújo

Começou com a corrupção. A conversa no banco da frente. Discutiam em uníssono os problemas do Brasil, com os argumentos que ouvimos sempre e algumas distorções históricas. Eram duas senhoras que o destino e a ideologia uniram num ônibus a caminho de Viracopos.

Da corrupção passaram aos sistemas políticos, numa inversão de fatos de dar orgulho ao mais conservador. “No Brasil, meu Deus, iam implantar um sistema comunista que meu Deus…” e a outra completava: “o Brasil não levantava nunca mais”, e um repeteco da primeira ecoava: “nunca mais…” Discutiram a presidenta Dilma na versão “bandida” (ladra de banco). Comentaram que a Europa tem um sistema socialista que não é, assim… comunista! E que só com muitas guerras é que se conseguiu vencer a União Soviética. Amém.

Minha leitura não rendia, e mesmo depois de eu própria me render, apelando para os protetores auriculares, ainda ouvia perfeitamente a discussão, a cada comentário mais exaltada. Pensei em falar, mas a verdade é que os absurdos eram tantos, e tão bem colocados em uníssono, que não sabia o que, como, ou por onde começar a contestar.

Seguiu-se um desfile de clichês: o problema do Brasil é que o povo não pensa. Não sabe pensar. É a minoria que pensa. Só querem saber de futebol e carnaval. E eu pensando comigo: se o povo só pensasse em futebol e carnaval ao menos seríamos uma nação mais alegre, mais em contato com nossas emoções e mais profundos desgostos – talvez mais democrática. O pensamento unitário é o que nos mata…

Com o melhor argumento que poderia dar, interrompeu-me mais uma vez os pensamentos, dirigindo-se à companheira de viagem: “É bom conversar com alguém assim, sabe? Porque a gente pensa igual, tem as mesmas ideias. Sempre tem alguém que vem e discorda, sabe? Então não dá, por aí, para conversar sobre essas coisas com qualquer um”.

Pronto. Ponto. Ganhei pontos em ficar quieta – mas não só por ela. A incapacidade crítica que ela aponta é a mesma que, com esse tipo de pensamento, reforça – à noção de uma população que não pode pensar senão o que é certo e que não pode conversar senão concordando. Isso – esse pensamento unitário – é a base de uma ditadura que controlou, perseguiu e cerceou a liberdade de expressão no Brasil por duas décadas, e é também a base do autoritarismo de esquerda que ela (por meio de trôpegos clichês) criticou.

Não sabemos discutir senão tentando convencer os outros do que (achamos que) é certo… E o povo que só quer saber de futebol e carnaval… Ao contrário, é uma nação amarga e intolerante, que não sabe defender uma questão sem entrar em méritos passionais e doutrinadores. Que o povo brasileiro só pensasse em carnaval e futebol, antes fosse. Ganharia nossa humanidade.

setembro/2012

Sobre luvas e o sentir

texto originalmente publicado no blog Manual da Mulher Moderna, a convite da Giovanna Montemurro

Acabo de finalizar um curta que é sobre a necessidade da mulher de dar conta de uma série de preceitos e regras para virar uma moça completa. Não é sobre isso, mas poderia também ser. Tem isso como base e é sobre outras coisas: sobre escolhas, sobre futuro, sobre intuição…

Sempre que termina as pessoas imediatamente me perguntam (são poucas as que fazem esse caminho sozinhas): “mas o que você quis dizer com isso?” Eu respondo prontamente: “o que é que você sentiu?” E elas me dão as interpretações mais bonitas do que eu quis, de fato, passar, mas que só existe quando chega no outro. Quase sempre me respondem: “senti uma sensação muito forte!” Ou mencionam liberdade, ou libertação da angústia. Então me olham com uns olhos curiosos e impacientes (“já dei a minha resposta, agora me dê a sua: o que é que você quis dizer?”).

E já não estaria aí a resposta?

Acho que quis dizer menos que senti. Senti primeiro, entendi, e transformei novamente em sensação (ou assim pretensamente). Mas o que me pedem é: como se explica? O que diz?

Há algum tempo tenho pensado que a educação tem uma falha gigantesca que é não nos ensinar a sentir, que é o máximo que, a alguém, se pode ensinar – e como pensar a partir do que se sente. Certa vez lacei na estante de casa um exemplar do lindo “Sentimento do Mundo”, de Drummond, usado em aulas pela minha irmã (na época em que ela, mais velha que eu, ia à escola). Chamaram-me atenção as anotações, todas a lápis, feitas ao longo dos poemas. Cito um (entre todas as frases explicativas), pra mim sintomático:

POESIA

Gastei uma hora pensando um verso

que a pena não quer escrever.

No entanto ele está cá dentro

inquieto, vivo.

Ele está cá dentro

e não quer sair.

Mas a poesia deste momento

inunda minha vida inteira.

A cada linha do poeta, uma linha, a lápis, de explicação. “Gastei uma hora pensando um verso/ que a pena não quer escrever.”: “não consegue expressar o que sente”; “No entanto ele está cá dentro/ inquieto, vivo.”: “a poesia existe dentro dele, mas ele não encontra palavra que expresse”; “Mas a poesia deste momento/ inunda minha vida inteira.”: um simples grifo em “inunda”, traduzindo: “domina”. Ao final do poema, a explicação: “o poeta apresenta a ideia de que a poesia é um estado de espírito.”

Pronto, lá se vai a beleza da poesia, transmutada brutalmente no que o poeta quis dizer. O poeta está melancólico, eu diria – mas encontro em outra página também para isso uma explicação (“O poeta não pertence à cidade, a esse mundo civilizado, industrial, capitalista”). O poeta não “quis dizer”, e não aprendemos a interpretar. Aprendemos o que é regra, o que é resposta certa (e a beleza do poema foi-se embora com um rabisco).

E a justificativa quanto a isso? Que não há (ou não haveria…) outro jeito de ensinar. Tive alguns poucos professores que me abriram janelas de percepção para o mundo. Uma delas, professora querida, dizia sempre: “o sentimento é a inteligência mais profunda” (talvez só agora tenha vindo a entender). Nos ensinava, em sala, a sentir, antes mesmo de interpretar. Como se faz isso – assim como: como se faz um produto que cause sensações –, está além do humano, ainda, explicar. Mas podemos intuir.

Meu trabalho de conclusão de curso (ainda em cinema) trouxe alguns lampejos em relação à questão. É a adaptação de um livro para roteiro. O livro se passa em 1946, e eu me coloquei essa tarefa que achei que ia ser bem fácil de adaptar as cenas para os dias atuais. A bem da verdade tem temas que ficam um tanto datados: a necessidade da virgindade da mulher, por exemplo. Mas o que me pegou foram os costumes, que diferença! Em uma passagem, a moça sai com o rapaz e esquece as LUVAS no bolso dele. Justo as luvas…

Talvez a educação e o formalismo do pensamento estejam mesmo atrelados a essa necessidade exagerada das regras de conduta, que tínhamos não muito tempo atrás. É de se pensar o quanto a educação tem como função justamente as regras: o certo e o errado. Em 1946 usávamos luvas, os homens usavam terno, não se podia sair sem chapéu. O mundo foi mudando, desses hábitos já não resta quase nenhum (as relações estão afrouxadas, podemos nos aproximar mais e melhor), mas continua em nós um peso e uma carga que é: não poder sentir. Como se tivéssemos tirado as luvas mas elas continuassem lá.

O Manual da Mulher Moderna, lançado no Brasil em 1955 – e que a Giovanna (com esse gentil convite de colaboração com o blog) me apresentou – parece um meio termo nessa evolução. A moça solteira já tem o direito de sair sozinha, mas ainda tem como preocupação os elementos que a tornem uma boa dona de casa, já pode ler e estudar, mas tem uma lista de livros “indicados” especialmente para contemplar seu tema predileto: o amor, já se comporta de acordo com ideias mais abertas mas tem mais que o direito – o dever – de “correção” dos filhos, e etc.

“Que a jovem de hoje não esqueça que tudo se pode conseguir com um sorriso e que mesmo as mais graves complicações familiares não resistem à boa vontade de fazer o bem e apaziguar contendas. Resista ao desejo de tomar partido por êste ou aquêle, nem entre em conflitos, por leves que sejam.” (mantenho a grafia da época, só pelo charme). Outra chave para a questão da educação: saber se colocar, sem com isso ser julgado e classificado como reclamão. A discussão é mal vista, mesmo quando parta do simples ato de compartilhar.

De todas as passagens do Manual, saber o que fazer e como se comportar é sempre o mais importante (daí ser um “manual” – e não se surpreendam com a quantidade de “deve” que há no texto). O Manual da Mulher Moderna está aí para isso: mostrar que avançamos um pouquinho. E que, com sorte, o que é citado como avanço para a época possa ser visto hoje como aprisionamento de ideias e ideais.

Ao longo dos anos fomos perdendo essas amarras: não precisamos mais casar para sermos completas, podemos nos relacionar mais proximamente, ler livros que não sejam de amor, ter trabalhos leves ou pesados e não ter que aprender as tarefas do lar. Tiramos as luvas. Mas ainda não aprendemos a sentir. Proponho, então, que leiamos os manuais: só assim entendemos de onde viemos – e, talvez, como as luvas continuam lá.

agosto/2012