Sobre luvas e o sentir

texto originalmente publicado no blog Manual da Mulher Moderna, a convite da Giovanna Montemurro

Acabo de finalizar um curta que é sobre a necessidade da mulher de dar conta de uma série de preceitos e regras para virar uma moça completa. Não é sobre isso, mas poderia também ser. Tem isso como base e é sobre outras coisas: sobre escolhas, sobre futuro, sobre intuição…

Sempre que termina as pessoas imediatamente me perguntam (são poucas as que fazem esse caminho sozinhas): “mas o que você quis dizer com isso?” Eu respondo prontamente: “o que é que você sentiu?” E elas me dão as interpretações mais bonitas do que eu quis, de fato, passar, mas que só existe quando chega no outro. Quase sempre me respondem: “senti uma sensação muito forte!” Ou mencionam liberdade, ou libertação da angústia. Então me olham com uns olhos curiosos e impacientes (“já dei a minha resposta, agora me dê a sua: o que é que você quis dizer?”).

E já não estaria aí a resposta?

Acho que quis dizer menos que senti. Senti primeiro, entendi, e transformei novamente em sensação (ou assim pretensamente). Mas o que me pedem é: como se explica? O que diz?

Há algum tempo tenho pensado que a educação tem uma falha gigantesca que é não nos ensinar a sentir, que é o máximo que, a alguém, se pode ensinar – e como pensar a partir do que se sente. Certa vez lacei na estante de casa um exemplar do lindo “Sentimento do Mundo”, de Drummond, usado em aulas pela minha irmã (na época em que ela, mais velha que eu, ia à escola). Chamaram-me atenção as anotações, todas a lápis, feitas ao longo dos poemas. Cito um (entre todas as frases explicativas), pra mim sintomático:

POESIA

Gastei uma hora pensando um verso

que a pena não quer escrever.

No entanto ele está cá dentro

inquieto, vivo.

Ele está cá dentro

e não quer sair.

Mas a poesia deste momento

inunda minha vida inteira.

A cada linha do poeta, uma linha, a lápis, de explicação. “Gastei uma hora pensando um verso/ que a pena não quer escrever.”: “não consegue expressar o que sente”; “No entanto ele está cá dentro/ inquieto, vivo.”: “a poesia existe dentro dele, mas ele não encontra palavra que expresse”; “Mas a poesia deste momento/ inunda minha vida inteira.”: um simples grifo em “inunda”, traduzindo: “domina”. Ao final do poema, a explicação: “o poeta apresenta a ideia de que a poesia é um estado de espírito.”

Pronto, lá se vai a beleza da poesia, transmutada brutalmente no que o poeta quis dizer. O poeta está melancólico, eu diria – mas encontro em outra página também para isso uma explicação (“O poeta não pertence à cidade, a esse mundo civilizado, industrial, capitalista”). O poeta não “quis dizer”, e não aprendemos a interpretar. Aprendemos o que é regra, o que é resposta certa (e a beleza do poema foi-se embora com um rabisco).

E a justificativa quanto a isso? Que não há (ou não haveria…) outro jeito de ensinar. Tive alguns poucos professores que me abriram janelas de percepção para o mundo. Uma delas, professora querida, dizia sempre: “o sentimento é a inteligência mais profunda” (talvez só agora tenha vindo a entender). Nos ensinava, em sala, a sentir, antes mesmo de interpretar. Como se faz isso – assim como: como se faz um produto que cause sensações –, está além do humano, ainda, explicar. Mas podemos intuir.

Meu trabalho de conclusão de curso (ainda em cinema) trouxe alguns lampejos em relação à questão. É a adaptação de um livro para roteiro. O livro se passa em 1946, e eu me coloquei essa tarefa que achei que ia ser bem fácil de adaptar as cenas para os dias atuais. A bem da verdade tem temas que ficam um tanto datados: a necessidade da virgindade da mulher, por exemplo. Mas o que me pegou foram os costumes, que diferença! Em uma passagem, a moça sai com o rapaz e esquece as LUVAS no bolso dele. Justo as luvas…

Talvez a educação e o formalismo do pensamento estejam mesmo atrelados a essa necessidade exagerada das regras de conduta, que tínhamos não muito tempo atrás. É de se pensar o quanto a educação tem como função justamente as regras: o certo e o errado. Em 1946 usávamos luvas, os homens usavam terno, não se podia sair sem chapéu. O mundo foi mudando, desses hábitos já não resta quase nenhum (as relações estão afrouxadas, podemos nos aproximar mais e melhor), mas continua em nós um peso e uma carga que é: não poder sentir. Como se tivéssemos tirado as luvas mas elas continuassem lá.

O Manual da Mulher Moderna, lançado no Brasil em 1955 – e que a Giovanna (com esse gentil convite de colaboração com o blog) me apresentou – parece um meio termo nessa evolução. A moça solteira já tem o direito de sair sozinha, mas ainda tem como preocupação os elementos que a tornem uma boa dona de casa, já pode ler e estudar, mas tem uma lista de livros “indicados” especialmente para contemplar seu tema predileto: o amor, já se comporta de acordo com ideias mais abertas mas tem mais que o direito – o dever – de “correção” dos filhos, e etc.

“Que a jovem de hoje não esqueça que tudo se pode conseguir com um sorriso e que mesmo as mais graves complicações familiares não resistem à boa vontade de fazer o bem e apaziguar contendas. Resista ao desejo de tomar partido por êste ou aquêle, nem entre em conflitos, por leves que sejam.” (mantenho a grafia da época, só pelo charme). Outra chave para a questão da educação: saber se colocar, sem com isso ser julgado e classificado como reclamão. A discussão é mal vista, mesmo quando parta do simples ato de compartilhar.

De todas as passagens do Manual, saber o que fazer e como se comportar é sempre o mais importante (daí ser um “manual” – e não se surpreendam com a quantidade de “deve” que há no texto). O Manual da Mulher Moderna está aí para isso: mostrar que avançamos um pouquinho. E que, com sorte, o que é citado como avanço para a época possa ser visto hoje como aprisionamento de ideias e ideais.

Ao longo dos anos fomos perdendo essas amarras: não precisamos mais casar para sermos completas, podemos nos relacionar mais proximamente, ler livros que não sejam de amor, ter trabalhos leves ou pesados e não ter que aprender as tarefas do lar. Tiramos as luvas. Mas ainda não aprendemos a sentir. Proponho, então, que leiamos os manuais: só assim entendemos de onde viemos – e, talvez, como as luvas continuam lá.

agosto/2012