Fuga no MIS

Considerações sobre ser bilionário

Começou com um notebook. “Caramba, isso deve ser caro!” Me disseram que uma moça muito rica disse que a dona do notebook era muito rica. Devia ser, assim, bilionária…

Se eu fosse bilionária, eu pensei, ia ter um desses. Mais! Ia ter um computador de cada de toda a linha! Contei a história a uma amiga, sentadas à sarjeta de um bar lotado. “Se eu fosse bilionária, não ia me preocupar com quantas cervejas eu pedi”.

Na ida até o banheiro perguntei ao garçom se os dvds estão à venda. Não. “Só se você pagar 60 reais cada um”, ele gracejou. “Se eu fosse bilionária”…

Começamos, assim, a pensar em todas as coisas que iríamos querer. Deixar o trabalho, montar um trabalho, comprar uma bicicleta dobrável, sair em baladas caras, não se preocupar nunca mais com aluguel, ter um carro, ir no restaurante que eu quiser, viajar sempre de avião…

Mas tem gente, eu pensei, que pensaria outras coisas: ter uma casa, pagar uma faculdade. Comprar comida. Pra você, o que é ser bilionário? O que é ser bilionário, num país miserável como o Brasil?

Nota: o texto tem que ir num crescendo: coisas banais e coisas caras, coisas que se precisa e se quer comprar, aluguel, restaurantes, balada… Mas aí pensei: tem gente que pensaria outras coisas: por exemplo pagar uma faculdade. Ou comida, ou casa. Pra você, o que é ser bilionário? O que é ser bilionário num país miserável como o Brasil?

Tem que ter um tom de chiste no começo, que vai se desconstruindo até chegar na pergunta (e a pergunta é o todo)

Jimmy e um smart

Mãe

Laura, pega a sua japona!
Você tem lenço de papel yes?
Você vai só assim? Pegou um casaquinho?
Eu quero uma pepsi cola.
Olha o trânsito, vai se atrasar! Passa um batonzinho?
Você avisou que ia chegar antes? Ou uma soda limonada.
Assim você não arranja namorado. Pega com o palito, vai engordurar seus dedos. É bom chegar uns minutinhos antes. Tem certeza que avisou?
Seca o cabelo pra sair, vai tomar friagem… Passa protetor! O sol tá forte demais a essa hora. Não quer levar um guarda-chuva?
Tá passando um documentário lindo. Liga no Canal Dois!
Eu sou mãe, Laura. Um dia você vai ser mãe e vai entender também.

Meu relato de parto


Faz uma semana que ela nasceu. Faz uma semana que eu só consigo pensar no parto e nela. A sensação é de uma viagem muito boa, em que a gente faz muitos amigos e promete se encontrar, e quer muito que essa euforia dure pra sempre mas sabe que mais cedo do que tarde vai passar.

A jornada começou na madrugada do dia 24, três e meia da manhã, quando rompeu minha bolsa. Fazia quase 10 dias que estávamos certos de que a Lina ia chegar e ela não vinha, e com a bolsa rota certamente era questão de horas até o trabalho de parto começar. Acordei o Pedro, ele ficou feliz mas foi bem prático “que bom, agora vamos dormir pra descansar pro trabalho de parto”. Deitei mas minha cabeça estava a mil, fazendo listas intermináveis das coisas que faltava pegar pra mala da maternidade, quais lanches eu ia levar, o que precisava organizar na casa. Era uma euforia boa e dessa hora em diante fui tomada por uma paz absoluta.

O rompimento da bolsa foi bem diferente dos filmes. Saiu só um pouquinho de água (parecia um jatinho de xixi que saiu por incontinência), e a água continuou saindo, aos poucos, nas 24 horas seguintes ― sendo que o maior volume saiu na madrugada seguinte. E também porque o rompimento da bolsa não é sinônimo de início de trabalho de parto.

Depois de 18 horas de bolsa rota é preciso entrar com antibiótico intravenoso para proteger o bebê de qualquer contaminação. A gente tinha visto isso no curso de preparação pro parto, mas a gente também tinha visto que normalmente o trabalho de parto começava em algumas horas. Mandei mensagem pra minha família às 7 da manhã pedindo pra não ficarem ansiosos, mas contando que a minha bolsa tinha rompido e que até o final do dia a Lina deveria nascer. Ouvindo os conselhos da minha Obstetriz (que por uma coincidência absurda estava acordada de madrugada quando eu enviei as primeiras mensagens e já nos orientou naquela hora), passei o dia deitada descansando e me alimentei bem. Fiz o cartão de nascimento da Lina com a data de 24/07 e uma segunda opção de 25/07, caso ela demorasse e viesse no começo da madrugada, pra já poder mandar pras pessoas com a notícia do nascimento. Mas o dia passou e eu fui ficando cada vez mais chateada que as contrações não vieram.

No fim da tarde a equipe me escreveu pra que eu fosse à clinica encontrar minha médica Obstetra e a Obstetriz e conversar sobre as opções, e já me encaminhar dali para a internação. Saí de casa chorando achando que não ia dar pra ser parto normal (sei lá, inventei que ela tinha que nascer até o final do dia), mas na clínica elas me explicaram que não tinha nenhuma indicação para isso, que depois da bolsa rota o bebê tem até 72 horas para sair sem risco e que a ideia era pensar se eu ia querer induzir o parto ou esperar ele começar espontaneamente. No caso de uma indução, ela poderia acelerar algum processo e a Lina acabar em uma posição não tão favorável para o trabalho de parto. Em qualquer das opções, Lina estaria nos meus braços dentro de três dias. Me achei otimista demais com o cartãozinho de nascimento dela. Ali mesmo minha Obstetra me examinou e disse que meu colo do útero já tinha diminuído bastante e que achava que o trabalho de parto poderia começar espontaneamente naquela noite. Eu estava com 1,5 cm de dilatação ― mas esse tipo de métrica foi uma coisa na qual eu não pensei (e fui incentivada a não pensar) até o finalzinho do parto.

Fomos para o hospital em Bragança. Às 20h administraram a primeira dose do antibiótico e seguimos para um quarto muito lindo, todo decorado com tema de nascimento (com a frase “O amor nasce aqui”, uma mulher grávida e muitas flores na parede). Quarto de hotel, com TV e banheiro próprio, e a caminha do bebê já ao lado. Deitei lidando com o acesso no meu braço, que eu tinha aflição de dobrar, e a ansiedade da espera. O Pedro viu um filme. Eu dormi e à noite começaram contrações muito fortes, muito mais do que as cólicas menstruais de vomitar a que eu já estava acostumada. Elas começaram a vir ritmadamente a cada 8 minutos, e entre uma e outra eu dormia. Era insuportável e eu tentava contar as respirações a cada contração para distrair a dor. Liguei para a Obstetriz e ela me orientou a tomar um banho, se passasse ainda não era trabalho de parto e, para meu desespero, depois do banho as contrações pararam. Com isso pelo menos consegui dormir, ainda com contrações espaçadas ao longo da noite, que eu marcava sem rigor no aplicativo, em estado de delírio pelo sono e dor.

Acordei no outro dia com a sensação de uma febre ruim que passou, como quando passava o primeiro dia da menstruação, e o desespero de pensar que, depois de todo esse sofrimento, o trabalho de parto sequer havia começado. Já fazia mais de 24 horas que a minha bolsa tinha rompido. Estava decidida a pedir para a minha equipe induzir o parto, assim que chegassem ― eu não tinha a menor condição de aguentar essa dor por mais um dia ― ou três.

A Obstetriz chegou de manhã, eu relatei isso pra ela chorando. Ela me disse que o trabalho de parto não era assim, que eu tinha tido as contrações a seco, sem nenhuma dose de hormônio no corpo, e que com isso a sensação ia ser muito horrível mesmo. Além disso, nenhuma dessas contrações tinha sido à toa, elas serviam pra amolecer o cérvix ou diminuir a espessura da parede do útero. Ela perguntou se eu queria conhecer a Lina e eu fiquei muito emocionada, e me disse que pra isso eu ia ter que passar pelo trabalho de parto. Esse foi o primeiro momento chave para o meu parto começar. Fizemos alguns exercícios de spinning babies na cama e na bola de pilates e com isso comecei a ter contrações espaçadas, ainda sem ritmo definido.

Todas as memórias do parto que tenho, além de fragmentos, são de detalhes. Não tenho nenhuma lembrança do quadro geral, mas de recortes, como planos muito próximos de cada uma das pessoas que estavam ali, e uma sensação espacial de onde as outras estariam em cada momento. Não tenho mais a lembrança exata de quando a minha Obstetra chegou, mas acho que foi bem pouco tempo depois disso. Aliás, acho que estava na bola, com a cabeça apoiada na cama. Sei que ela me orientou a como vocalizar durante as contrações e me deu suas mãos pra eu segurar, o que aliviava a dor. Eu estava relaxando o corpo, tentando não sentir a dor a cada contração e ela me orientou o contrário, pedindo que eu me levantasse e andasse. Com isso, as contrações vinham mais frequentes e mais fortes. Ela me explicou que o trabalho de parto só iria acontecer se eu passasse por elas. Eu tinha que sentir a dor. Foi o segundo momento definidor e contrações mais fortes começaram a vir. Queria lembrar exatamente o que as duas me falaram, porque as duas falas anteciparam a doçura transformadora com que eu seria tratada durante todo o trabalho de parto. Entre as caminhadas, eu sentava na bola e apoiava a cabeça na cama, exausta.

A partir daí minha memória, além de fragmentada, começa a se contaminar pelas doses de hormônio que inundaram meu corpo. Lembro de eu e o Pedro comendo o almoço do hospital (eu tinha internado depois da hora da janta e só tinha comido frutas e bolachinhas desde então, e estava experimentando uma sensação nova de não ter incômodo com a comida, que tive durante toda a gestação). A equipe decidiu aproveitar e sair para almoçar também, e eu e o Pedro ficamos sozinhos.

Depois de comer continuamos incentivando as contrações com exercícios na bola e caminhadas pelo quarto, focando em sentir a dor. Depois de algumas contrações eu já estava exausta. Eu sabia que eu devia incentivar a dor a vir mas naquele momento não tinha mais forças. Sentei na bola e apoiei a cabeça na cama. O Pedro ficou apoiado na diagonal e a cada contração eu segurava as duas mãos dele e entre elas os dois dormíamos. Fomos marcando no aplicativo e, mesmo sem fazer os exercícios e andar pelo quarto, as contrações começaram a tomar ritmo e a vir regularmente de 5 em 5 minutos. Foi o terceiro momento definidor, quando senti o que meu corpo pedia ― e pra mim extremamente simbólico que as contrações tenham pegado ritmo (o efetivo início do trabalho de parto) quando estava sozinha com o Pedro.

Quando as duas voltaram do almoço, eu já estava completamente chapada de hormônios. As cores do quarto tinham mudado (tudo ficou mais claro e brilhante) e logo depois de cada contração eu era tomada por uma onda de euforia deliciosa. Descrevia a sensação pra equipe e cheguei a falar pro Pedro que ele não sabia o que estava perdendo. O trabalho de parto começou pouco depois do meio-dia. Eu odeio a escuridão e luz de penumbra pra mim é um incômodo. Apesar de estar no quarto de hospital desde a noite anterior eu tenho a sensação de ter sentido o dia passar e a tarde cair. O trabalho de parto começou com as luzes do quarto totalmente acesas (algo que eu tinha listado no plano de parto para estranhamento da equipe) e não sei em qual momento pedi que apagassem. Captei uma comemoração da equipe, que sabia que eu tinha avançado mais uma fase. Eu acho que isso foi depois do chuveiro, quando aproveitaram pra reorganizar o quarto. Saiu o bercinho, e a cama que estava cortando o quarto em dois foi pra parede, deixando o meio do quarto totalmente livre, o que foi essencial porque foi o espaço onde, às 18h48, a Lina nasceu.

Depois dessa fase inicial, as contrações começaram a ficar mais fortes e eu já não tinha a recompensa de euforia depois de cada uma delas, por isso pedi para ir para o chuveiro. A água quente e a liberdade de posições realmente ajudam, mas as dores, que a cada etapa passam a vir mais fortes, são incomparáveis com qualquer coisa que eu já vivi. O aplicativo de contrações tinha três categorias para classificar o nível de dor: verde, laranja e vermelho. Eu tentava ser parcimoniosa na marcação, mas senti pelo menos uns 11 níveis de dor diferentes ao longo do trabalho de parto, e conforme evoluía falava do “novo laranja” e do “novo vermelho”. Eu estava com a bola e me apoiava nos corrimões da parede do banheiro tentando achar uma posição em que as contrações doessem menos. É engraçado, porque no meio da dor intensa, da água quente que massageava as minhas costas, de joelhos no chão e apoiada na bola, tive dois pensamentos muito racionais. O primeiro foi a preocupação com a equipe. Minha Obstetra tinha se aproximado e segurava as minhas mãos durante as contrações, se molhando com os respingos de água e eu pensava que se ficasse lá elas iam se molhar muito. O segundo pensamento foi que se eu ficasse muito tempo com a água quente correndo o chuveiro podia queimar. Depois de um tempo significativo debaixo d’água, em que a minha Obstetra saiu e voltou com uma jaqueta (e já me deu alívio que ela estava quentinha), esse segundo pensamento deu lugar ao questionamento de como um chuveiro podia durar tanto tempo aberto no mais quente sem a resistência queimar.

Não tenho certeza se fiquei muito tempo ou se fui duas vezes para o chuveiro durante o trabalho de parto. Acho que foram duas vezes, porque uma delas eu estava de pé, senti uma contração fortíssima e expeli algo. Antes de olhar para baixo disse “saiu uma coisona agora”. Era uma secreção vermelha escura e mais firme, e a equipe comemorou muito. Foi no chuveiro também que a Obstetriz me olhou emocionada e disse “tem uma gota de leite no seu peito”. Durante o trabalho de parto eu e o Pedro achamos muito engraçado que, não importava o quão nojento e estranho o que acontecia era pra gente, ela achava tudo lindo. Mas nessa hora a emoção dela, mesmo pros meus olhos leigos, tinha razão de ser.

A minha Obstetra me secou e me falou em um tom muito calmo, me olhando profundamente nos olhos, que meu parto estava sendo muito gentil. “Gentil?” Eu não conseguia entender aquele adjetivo. E ela explicou que as contrações estavam vindo muito fortes, mas cada uma cumprindo uma função muito clara para o trabalho de parto avançar. Me impressionou o que ela disse, o tom, o olhar. Era como ser nutrida de amor pra que o trabalho de parto pudesse continuar.

Quando eu saí do banheiro demos risada porque eu falei alguma coisa pro Pedro, que estava sentado na escadinha que eu usava para subir e descer da cama, com os braços apoiados na perna e a cabeça apoiada nos braços e ele não respondeu. Ele tinha dormido.

Aqui minha memória faz um corte. Já estava tudo escuro, e eu voltei pra minha posição preferida, sentada na bola com a cabeça apoiada na cama. Em setembro, um mês antes de concebermos a Lina, eu tinha participado de um laboratório de edição com meu longa-metragem “Daragaia Lida”. Em russo isso significa “Querida Lidia”, o nome da minha bisavó e primeira linha da carta que ela recebeu do meu bisavô, que tinha partido em turnê pela Argentina e, depois de alguns infortúnios, não conseguiu voltar para o Brasil. No primeiro dia do laboratório a Consultora pediu pra cada participante escolher uma pedrinha dentre as que ela tinha levado e falar qual órgão se relacionava ao seu filme. Escolhi uma pedrinha pequena e vermelha, em formato de triângulo com as laterais arredondadas e falei que o meu órgão era o útero. Pra mim aquela pedrinha era um útero também, e foi ela que escolhi levar pra sala de parto quando vi na lista da mala da maternidade a sugestão de algum elemento que trouxesse afeto ou religiosidade. Nessa hora eu pedi pro Pedro pegar a pedrinha na minha bolsa.

Aqui vieram as piores contrações (o “novo vermelho”), meus gritos se fizeram mais altos e vibrantes. Com a pedra em uma das mãos segurava as duas mãos do Pedro e avisava quando vinha a próxima contração para ele marcar no aplicativo. Tenho a memória do Pedro na minha diagonal, à direita na cama, segurando as minhas mãos com a pedrinha no meio. E também tenho a memória da minha Obstetra e da minha Obstetriz se revezando entre as mãos e massagens nas minhas costas que aliviavam muito as dores enquanto eu vocalizava cada vez mais. Durante a contração eu achava um momento de pausa nos meus gritos (que se tornavam mais fortes, altos e com oscilações) pra orientar a equipe de onde estava a dor (“na lateral mas no meio das costas”) e lembro do Pedro achando graça disso ― o que trazia alguma leveza para o momento. Não sei como elas entendiam perfeitamente as indicações, e conseguiam massagear quase que magicamente exatamente onde eu sentia cada contração ― que eu sequer sabia que vêm em lugares diferentes, exatamente porque cada uma cumpre uma função.

Penso que foi nessa hora que o Pedro recebeu uma mensagem do meu editor avisando que a nova versão do meu filme, na qual estivemos trabalhando no último mês, estava pronta. Foi um dos momentos durante o trabalho de parto em que saí completamente do transe: quando falaram que estava chovendo lá fora e eu tive um sobressalto com as roupas do varal (que o Pedro já tinha tirado muito antes de a gente sair de casa) e quando o Pedro anunciou essa mensagem e perguntei se o link já era o do Youtube, para seguirmos com a inscrição no edital que estaria aberto por apenas mais alguns dias. Terminar esse filme e parir no mesmo dia pra mim foi de uma força simbólica absurda. Ele foi feito para as mulheres da minha família: minha avó, minha tia-avó (que aliás era parteira obstetriz) e minha bisavó. Mas agora penso que ele foi feito para a Lina.

Depois disso os hormônios bateram forte de novo. Eu tinha uma alucinação de que quem mandava as contrações pra mim era um homem, alguém de fora do meu corpo. Como um vilão cruel. Eu sentia elas vindo e pensava que lá vinha ele de novo. Eu perguntava quantas contrações ainda faltavam para acabar, se eram 10 ou 50, eu precisava dessa informação pra eu saber se ia aguentar. Além de precisar isso ser impossível, a equipe não me dava nenhuma informação que pudesse me desviar do processo, das minhas decisões que iam pautando (se bem muito bem amparadas e sempre com sugestões possíveis de posições e movimentos) a sequência do trabalho de parto.

Quando fizemos o curso de preparação para o parto, também com essa equipe, eu viajei identificando em cada fase as etapas de um roteiro audiovisual, e se estivesse lúcida nessa hora ia ver claramente que o momento em que estava se tratava do “tudo está perdido”, em que o protagonista sente que não dá conta do recado e já gastou todas as suas forças na jornada ― antes de reunir forças que ele nem sabia que tinha para o embate final, passando pelo clímax e inaugurando o terceiro ato do roteiro. Eu achei que esse conhecimento, não de parto mas de arco dramático, ia me ajudar a navegar pelos momentos do parto. Mas na hora eu ― enquanto falava que não tinha mais forças e que achava que não ia conseguir ― não tinha nenhuma capacidade de raciocínio lógico, e por sorte me perdi vivendo cada fase sem me dar conta delas.

Cada contração era fortíssima e entre elas eu apagava. A impressão que me dava era que eu dormia 1 hora em cada cochilo, mas seguramente eram apenas alguns minutos entre cada contração. Falei isso pra equipe e minha Obstetra falou que eu não tinha que me preocupar quanto tempo estava passando, pra deixar isso com elas. Parte do tratamento humanizado, elas não entravam em informações técnicas, nem paravam meu processo para fazer nenhum exame. O de dilatação, por exemplo, fizemos na clínica antes de internar, quando eu estava com 1,5cm e em algum momento do início do processo (quando a luz do quarto ainda estava acesa) e eu estava com 4cm. Tenho uma lembrança muito vaga desse segundo dado, e sinceramente nenhuma lembrança do exame em si.

Durante as contrações, quase sem que eu percebesse, elas se aproximavam, afastavam a camisola da minha barriga, e mediam os batimentos cardíacos da Lina. Na minha cabeça se formou uma imagem da bebê empurrando o pé lá em cima e descendo nadando, uma imagem muito fluida e leve (e que não fazia sentido nenhum porque o parto já começa com o bebê com a cabeça lá embaixo e sem espaço para manobras). Mais uma alucinação estranha em que a minha cabeça se perdia entre os momentos de dor e de sono. Da equipe, no geral, eu percebia sempre as comemorações, e nessa hora entendi que Lina tinha descido mais e estava onde precisava estar. Aliás, depois eu soube que ela esteve onde precisava estar em todos os momentos do parto, e passou por ele plena, sem nenhuma alteração nos seus batimentos.

Depois dessa fase de contrações intensas (o novo novíssimo vermelho) eu avisei que precisava me deitar. Eu sabia que essa posição era a pior para as contrações mas não tinha mais forças e precisava dormir. A equipe consentiu na mesma hora (a decisão era minha a todo momento). Eu deitei e realmente consegui apagar, mas a contração que veio nessa posição doeu infinitas vezes mais que todas as outras. Apaguei novamente e antes da segunda contração tentei mudar de posição, erguendo o quadril e ficando em quatro apoios, o que também foi péssimo (tirando que a equipe aproveitou essa hora pra fazer o rebozo, uma espécie de massagem feita com um pano que relaxa muito a lombar). Antes da próxima contração eu saí da cama e instintivamente comecei a apoiar as costas na lateral, tentando me apoiar com os cotovelos nela. Perguntei se podia deitar no chão e rapidamente colocaram um lençol para mim. Eu pedi que o Pedro me amparasse, e minha Obstetra e Obstetriz rapidamente se entreolharam falando em pedir a banqueta (que até então eu nem conhecia).

Acho que foi um pouco antes disso que minha Obstetra me falou que eu já estava me aproximando do final do parto. Eu perguntei se a Lina tinha encaixado e entendi que ela já tinha encaixado muito antes. Perto desse momento também houve uma movimentação para avisar a Pediatra, que chegaria na fase final para examinar a Lina ainda no meu colo. Trouxeram a banqueta (uma espécie de assento de privada com a parte da frente aberta e uns 30 ou 40 centímetros só de altura) e forraram o chão com um plástico. Eu sentei nela, o Pedro puxou a poltrona do quarto para trás de mim e apoiou minhas costas e minhas mãos. A Obstetra e a Obstetriz se sentaram de pernas cruzadas no chão à minha frente e iluminavam a cena com a lanterna do celular. A Obstetriz perguntou se eu queria que ela filmasse esse momento e eu disse que não. Nunca gostei de fotos de parto, em que a parturiente aparece sempre com expressões de dor, mas desse momento eu gostaria de ter o vídeo só pra ver o movimento que a Lina fez depois, que me pareceu surreal. Por outro lado, se ela estivesse com o celular ligado, eu não teria a memória tão linda de ter cruzado o olhar com cada uma delas, minha Obstetra, minha Obstetriz e a Pediatra, que nesse momento já tinha chegado e me deu um sorriso acolhedor, de pé encostada na cama à direita.

Eu achava que a fase pior seria a das contrações e que depois disso eu seria guiada na fase expulsiva pelo instinto materno querendo ver minha filha. Mas não foi nada disso. A questão do instinto é que ele não te faz saber o que fazer. Ele é mais sutil, é um fazer sem saber que se está fazendo, ao mesmo tempo em que as dúvidas, angústias, medo e dor continuam presentes. No laboratório de edição, o da pedrinha, a Consultora falava sempre em acessar os subterrâneos de cada filme, e o parto (outra alucinação) me parece que é percorrer esses corredores do subterrâneo. É uma experiência que coloca a gente em outro nível de vibração, como quando a gente tem contato com a morte de alguém próximo, mas numa dimensão de potência de vida totalmente empoderadora. De toda forma, subterrâneos, dificuldade, medo, dor. Tudo junto nesse momento.

Por volta dessa hora minha Obstetra pediu para me examinar e eu estava com 9,5cm de dilatação. A exaustão batia e eu senti que apaguei por alguns minutos. Quando abri o olho ela me falou sorrindo “a gente precisa de você aqui”. Ela encostava na minha perna pedindo pra eu relaxar e me orientava sobre como vocalizar e onde fazer força ― já não eram mais os gritos para aguentar as contrações, mas canalizar essa força para baixo a cada contração para a saída da bebê. Minha Obstetra pedia que eu sorrisse e eu sorri nos momentos mais críticos, enquanto expelia a Lina. Mas por dentro eu estava esgotada e sem vontade nenhuma de comemorar, enquanto as três me olhavam com encantamento e calma.

A sensação é de que eu travava todo o meu corpo pra Lina não sair. A Obstetra tocava minha perna pedindo para eu relaxar e sugeria que eu viesse com as costas para frente e eu não conseguia. Quando avisei que as contrações não estavam mais vindo, elas sugeriram que eu andasse pelo quarto e resolvi ir até o banheiro. Mas assim que eu me sentei no vaso veio uma contração fortíssima, beirando o insuportável. Eu levantei e abracei minha Obstetriz, que tinha me acompanhado, e assim que a contração passou voltei correndo para a banqueta.

Sentia meu períneo ardendo e parecia que eu ia rasgar em duas, o que piorou quando elas começaram a ver a cabeça da Lina. O Pedro disse que me sentia travando toda vez que elas comemoravam ao ver a cabeça, que aparecia e voltava para dentro. Não tinha mais o que fazer. Comecei a fazer força a cada contração. Pedro me dava beijos na bochecha e na cabeça e pedi pra ele parar com os beijos da bochecha, que nesse momento me incomodavam, mas continuar com os da cabeça, que me davam alento.

Em uma das contrações o tampo da cabeça da Lina saiu. Eu olhei para baixo e vi aquilo, que na minha cabeça pelo instinto materno deveria me fazer ter forças pra empurrar mais, mas aquela cabeça cheia de cabelos saindo de mim me deu uma aflição terrível. Minha sensação foi de que tinha dado. Por mim eu ia pra casa naquela hora e ia viver pra sempre com aquela cabeça semi-saída de mim. Acontece que nessa mesma hora a Lina se mexeu e foi a sensação mais surreal que eu já experimentei na minha vida. Senti a cabecinha se revirando no períneo e o resto do corpinho, bracinhos e perninhas, se mexendo dentro de mim. Ela queria sair. A aflição foi tão grande que eu comecei a fazer força mesmo sem sentir uma contração (apertando as mãos do Pedro, amparada por ele com o torso todo para a frente e os joelhos para dentro, por instinto, do jeito que a Obstetra tinha orientado antes). Na segunda vez que empurrei ela saiu, cabeça e corpinho de uma só vez (como minha Fisio pélvica disse que seria, “escorregando”). A Dra Sylvia pegou ela na mesma hora e, antes que eu percebesse, ela já estava no meu colo chorando. Expliquei pra Lina que era eu, que a gente estava esperando muito ela chegar, e ao ouvir minha voz ela parou de chorar e abriu um dos olhos pra ver quem eu era.

A Obstetra disse que precisava me examinar e pediu para eu ir para a cama. Pedi para alguém segurar a Lina e me avisaram que isso era impossível, já que a gente ainda estava ligadas pelo cordão umbilical. Subi na cama e mal entendi uma movimentação muito intensa que começou a partir de então. Enquanto a Pediatra colocava a Lina no meu peito para mamar, a Obstetriz me deu duas injeções, cada uma em uma perna e uma enfermeira entrou com uma bolsa de ocitocina para colocar no meu acesso. Cada mamada da Lina doía e toda vez que eu dobrava o braço para consertar a pega o medicamento (com o acesso já comprometido pelos movimentos desde o dia anterior) parava de descer. Enquanto isso minha Obstetra apertava minha barriga, o que doía muito e mexia o cordão umbilical, que eu sentia arder no períneo. Depois de um tempo tentando consertar a pega eu pedi que tirassem a Lina do meu peito, com um lampejo de lucidez de que a prioridade naquele momento era a administração do remédio, e ela foi para o colo do Pedro, com todo o acolhimento da equipe que na mesma hora falou da importância também do colo do pai.

O Pedro me disse que na hora que eu deitei jorrou muito sangue de mim, e a Obstetriz me contou depois que viram a hemorragia assim que eu me levantei da banqueta, quando já começou a movimentação pra buscar a ocitocina. Por sorte eu estava com a cabeça cheia de adrenalina e não reparei em absolutamente nada disso. Aliás, nem a correria da equipe me pareceu incomum. A única coisa que me soou estranha foi quando perguntei para o Pedro se ele já tinha avisado as pessoas do nascimento e minha Obstetra interrompeu sem a doçura habitual dizendo firme que o parto só termina com a expulsão da placenta. Um pouco depois disso elas pediram que eu fizesse força e a placenta saiu, acabando com a emergência. Não reparei no sangue nem quando as duas me pediram para levantar o quadril para tirarem o lençol que estava encharcado. A única coisa que me incomodou foi quando vi que meu pé estava sujo, e pedi para limparem porque me deu aflição.

Foram 39 horas de bolsa rota e quase 7 horas de um parto sem indução, sem analgesia, sem nenhuma intervenção médica desnecessária e sem laceração, pelo qual eu tenho uma gratidão profunda e eterna à equipe de mulheres que me acompanhou no parto e na gestação (médica obstetra Dra. Sylvia Freire, obstetriz Amanda Cavani, pediatra Dra. Carla Juliana Bastos, fisio pélvica Anna Paula Garcia e osteopata Elizabeth Belucci).

Hoje completam duas semanas desde que a Lina nasceu (semana em que estive escrevendo esse relato entre cochilos e mamadas). Ao final da primeira, fomos à consulta com a Obstetra e eu expliquei pra ela “Vamos ver a Dra Sylvia, foi ela quem te segurou pra você não cair.” Ao que a médica me respondeu com um sorriso “Foi só isso mesmo que eu fiz, segurar para ela não cair”. Mas isso é mentira. Não fosse a atuação médica precisa e as indicações técnicas que funcionaram como uma baliza do meu instinto e do meu desejo, eu não teria parido a Lina de maneira tão gentil, para usar o adjetivo que agora eu entendo perfeitamente bem. Mais que isso: não teria entendido que o melhor jeito de trazer uma nova vida ao mundo é sendo nutrida de amor.

Descentralização e transparência

A Secretaria Especial de Cultura (saudades Ministério) publicou um vídeo explicando “novidades” para a Ancine, vídeo que foi republicado mais de uma vez para corrigir erros na legenda, apontados pelos seguidores, como “paralização” com zê. Apesar da apresentação patética do nosso secretário, o ex-galã de novelas Mário Frias, a estratégia do Governo é ardilosa e pode confundir.

Falam em “transparência” e em “descentralização de recursos”. Ora, transparência e descentralização é bom. E se o Governo está propondo isso agora, pressupõe-se que não existia. Vão colocar ordem na cultura, como gostam de sugerir, em segundo plano dando a entender que a era de artistas aproveitadores do estado acabou. A estratégia é interessante, porque, sem falar diretamente isso (que seria uma mentira deslavada), sugere que em gestões anteriores o setor era mal administrado, escuso e que premiava com recursos excessivos apenas os seus aliados (parece com o que estamos vendo no Governo Federal, não?).

Deliberadamente, algumas informações relevantes ficam de fora do discurso: a de que transparência sempre existiu na Agencia é a primeira delas. Tanto os mecanismos de fomento do Fundo Setorial do Audiovisual quanto os projetos contemplados, valores de aporte, bilheteria e valores devolvidos ao FSA são informações públicas a um clique de distância de todos através do portal da Ancine. Inclusive os dados de projetos que pediram aporte e não captaram também ficam no ar.

A segunda é que os mecanismos para descentralização de recursos existem há anos. Inclusive o maravilhoso edital de produção de conteúdo para TVs públicas, que além de ser setorizado por regiões permitia que produtoras de menor porte produzissem, gerando renda e profissionalização de forma muito mais horizontal. Esse edital foi descontinuado pelo Governo Bolsonaro, junto a uma política de desmonte das emissoras públicas do país (unificadas agora com as emissoras governamentais para transmitir discurso oficial – muy democrático, diga-se de passagem). Aliás, todos os editais foram descontinuados, que é a informação principal que não consta no discurso de “novas regras” para o setor: a Ancine está paralisada (com “ésse”, diferente da legenda no primeiro vídeo com a justificativa estapafúrdia de que estão sendo criticados em falso).

Desde que Bolsonaro assumiu, dois anos atrás, a agência não abre mais nenhum edital (centralizado ou não), e não pagou os projetos já contemplados. Pra quem acha que não tem dinheiro pra ninguém e que cultura não devia ser prioridade: temos dinheiro em caixa. Isso porque o Fundo Setorial do Audiovisual é financiado com imposto do próprio setor, recolhido em troca da exploração do audiovisual pelas empresas de telecomunicações. O que quer dizer que por lei ele não pode ser usado em nenhuma outra área (do contrário não teria razão para seu recolhimento). A situação é tão grave que o Ministério Público Federal, após investigação, denunciou a diretoria da Ancine (do Governo Bolsonaro) pela paralisação deliberada dos projetos por crime contra o interesse público.

Mas a estratégia é interessante: omitir informações e sugerir que o tempo de paralisação está sendo utilizado para reestruturação de um setor que não funcionava. No limite: desmoralizar os artistas e profissionais da área. A cultura segue sendo asfixiada, ardilosa e lentamente.

Por todas nós

Não costumo falar sobre abusos ou sobre assédio em público. É um assunto que me toca e faz com que eu me sinta extremamente vulnerável. É um assunto privado, a sociedade me ensinou a acreditar.

Minha irmã me falou outro dia, quando da discussão do caso Mari Ferrer (cuja sentença foi classificada com razão pelo The Intercept como “estupro culposo”) que para as mulheres essas questões tocam tanto porque a cada nova notícia dessas revivemos os nossos próprios abusos. Tive que ouvir muita besteira de homem falando sobre o caso da influenciadora digital. Porque para os homens a primeira reação ao ouvir uma mulher denunciando um assédio é “será que ela está falando a verdade?”. Para as mulheres é: “Igualzinho o que eu já vivi”, ou “Isso pode acontecer comigo também.”

O vídeo que viralizou da Deputada Estadual Isa Penna sendo assediada por um colega da Alesp com casa lotada e na frente do Presidente da Assembleia é de revirar o estômago. Um colega sensível questionou, atônito, por suas redes “se isso aconteceu em um lugar público lotado, imagino o que as mulheres vivem em outros ambientes”. Sim. Vivemos. Repetidas vezes. Desde a infância.

Meu primeiro abuso foi logo antes de completar 11 anos. Um adolescente do colegial apertou a minha bunda no corredor da escola. Eu olhei pra ele brava, o amigo dele ficou meio besta “pô, sacanagem!” e ele riu. Riu muito. Não acho que ele fez isso por tesão por uma criança pré-puberdade. Acho que ele fez, e riu, porque sentia que podia.

Não foi o único abuso que eu sofri. Nem foi o pior.

Também vi muitos assédios acontecerem com amigas, colegas, conhecidas. Lembrei da monitora de recreação de férias quando eu era bem pequena e que os adolescentes mimados do grupo falavam que era fácil passar a mão. E do constrangimento dela que eu presenciei em uma dessas ocasiões, que eu fui entender esse ano o que era, o constrangimento de alguém que sofreria mais denunciando um jovem de família rica do que silenciando pra manter seu emprego. Para eles, era “fácil”.

Devemos lembrar, sempre, que esses assédios, mais que sexuais, são para exercer uma relação de poder. Dá pra ver isso no vídeo em que fica claro o absurdo a que foi submetida a Deputada Isa Penna (repito o Deputada não por acaso). O jeito que o abusador Fernando Cury se aproxima sendo dissuadido por um colega, que puxa seu braço (teria falado sobre isso antes com o colega?). O jeito dissimulado com que mantém os olhos fixos no Presidente enquanto ela afasta seu corpo com repugnância. Lembro das vezes em que eu pensei se não seria só impressão que o pau duro do cara ou a mão dele roçou em mim, já que estava passando ou olhando para outro lado. O olhar dissimulado do homem abusador e a dúvida que de dúvida nada tem da mulher abusada.

Me identifico com o abuso de Isa Penna. Me vejo, também, e completamente, na fragilidade dela no dia seguinte ao abuso. No choro por raiva, por ser coagida, através da violação do seu corpo, a não pertencer a esse espaço ao qual teve direito com 53 mil votos. No toque indesejado que fica para sempre na pele, a atravessa e dilacera por dentro. Na violência institucional de um sistema que faz de tudo para que situações como essa se perpetuem e não sejam criminalizadas.

Hoje chorei junto com a Deputada Isa Penna, que implora “Eu sou uma mulher jovem eleita e tenho o direito de estar aqui sem ser apalpada, sem ser assediada.” Pelo direito que, na verdade, não temos. Pelas verdades que temos que silenciar. Pelos abusos que sofremos. Repetidas vezes. Para não pertencer.

Acesse o abaixo-assinado pela cassação do mandato do deputado Fernando Cury em: https://www.feminista.me/justicaportodas

Yes, nós temos filtros

ancine

Bolsonaro essa semana transferiu por decreto o Conselho Superior de Cinema para a Casa Civil, estuda realizar a mudança da Ancine para Brasilia (um custo aos cofres públicos) e cogita seu fim. Tudo por ter lido um texto que denuncia produções audiovisuais supostamente inadequadas realizadas com dinheiro público. Para coroar a semana, deu um discurso público em que diz que se não puder ter filtro na produção, fechará a agência. Não, Bolsonaro não está chocado com o conteúdo produzido. Aliás, nem é à toa que um blogueiro resolveu levantar dados e pesquisar produções da Ancine, em texto que por acaso chegou aos olhos do presidente (que tem tão poucos afazeres para poder ler blogs e com isso pautar a agenda política do país). Trata-se de uma construção de discurso, aliás, muito bem amarrado. Mas que, felizmente para nós, não diz respeito à realidade da produção audiovisual no Brasil.

Ao falar em “filtro”, Bolsonaro propõe um controle ideológico sobre as produções que nunca antes existiu e, ao condicionar sua visão ao fechamento ou não de um órgão regulador do Governo, age com autoridade incompatível com a democracia. Mas, aos ouvidos do público que desconhece o funcionamento da Ancine, o que se escuta é que o dinheiro está sendo usado de forma inadequada, ou, pior, para produções inadequadas. Quem acompanha os vais e vens da política do audiovisual sabe que há um plano claro desde o Governo Temer para minar a credibilidade da Agência Reguladora do Cinema e liberar assim sua verba para outras áreas. O que não se conseguiu fazer criticando seu funcionamento, que é modelo de eficiência na gestão pública, nem através de corrupção, uma vez que o dinheiro do fundo é vinculado diretamente à exploração do audiovisual pelas empresas contribuintes.

A resposta imediata do setor (não sem razão) foi “não vai ter filtro, vamos continuar produzindo”. É óbvio que quando respondemos isso, nos referimos ao filtro ideológico, ao controle por paixões e não por critérios artísticos e comerciais, controle esse que é nocivo a toda a cadeia produtiva ― e à democracia. Mas soa como se estivéssemos justificando essas supostas produções inadequadas, defendendo que a agência siga impune e sem controle. Mordemos a isca. A realidade é, como sempre, menos sensacionalista e mais entediante. E a verdade é que já temos filtros, e muitos!

Quem trabalha com audiovisual sabe a minúcia que é para se construir um projeto. Eu posso contar um pouquinho pra vocês:
O formulário padrão da Ancine é dividido em Aspectos Artísticos e Adequação ao Público, Qualificação Técnica do Diretor e Roteirista, Capacidade e Desempenho da Proponente e Plano de Promoção e Difusão da Obra. Cada um desses itens é subdividido em vários outros, que funcionam como perguntas que devem ser respondidas pra deixar o mais claro possível qual obra vai ser produzida, pra quem, e se o proponente é capaz de fazê-lo. São eles: Proposta de Obra Cinematográfica, Público-Alvo do Projeto, Estrutura e Gênero Dramático, Linguagem e Procedimentos Narrativos, Perfil dos Personagens, Cenários e Locações, Concepção Visual, Argumento, Currículos da equipe, Estrutura da Proponente, Apresentação e currículo resumido da produtora, Infraestrutura e equipamentos disponíveis, Quantidade de funcionários fixos e colaboradores, Estratégia de Difusão, Parcerias para promoção, difusão e distribuição da obra, Ações Multi-Plataforma e Outras Formas de Difusão e Cronograma de Execução Física (e cada um desses itens ainda tem um subtítulo explicando o que deve ser apresentado)*. Além disso entregamos um Orçamento detalhado, que deve ser seguido à risca na realização do projeto, com comprovação minuciosa através de notas fiscais. Só nisso já movimentamos várias áreas, com advogados, contadores, produtores, roteiristas e equipe técnica, para colocar o projeto de pé e buscar seu financiamento.

Se lendo já é muita coisa, imagina escrever esse conteúdo todo com conhecimento do que é cada coisa e aplicado ao seu projeto. E tudo isso é levado em consideração na hora da seleção, que é feita por técnicos e agentes da área audiovisual (dois pareceristas independentes por projeto), que medem, entre outras coisas, se a obra proposta está adequada ao público e ao circuito, se o orçamento bate com o que vai ser realizado, se há relevância no projeto proposto e se o proponente tem capacidade de realizá-la. É uma análise técnica detalhada, a partir de um projeto imenso, que é enviada para cada um dos proponentes para justificar sua aprovação ou não. Mas nunca, jamais, a escolha é feita por gosto pessoal ou ideologia. Isso permite que sejam realizados, na mesma cadeia produtiva, uma série sobre modelos trans e um filme da Igreja Universal. Desde que cada um tenha justificado seu público, seu potencial, sua qualidade artística e sua capacidade de produzir. É um filtro, se assim quiserem chamar. Um filtro com furinhos bem pequenos, que mesmo pra quem é da área é difícil de atravessar.

A fala do Presidente não passa de retórica para fazer crer ao público que a agência investe em filmes inadequados, e abrir com isso espaço para usar o dinheiro do Fundo Setorial do Audiovisual em outras áreas do governo, quando a seleção é criteriosa, feita por profissionais técnicos da área, e nunca envolveu interferência no conteúdo. Ao contrário, é possível encontrar projetos de diversos espectros e ideologias entre os aprovados no fundo, o que garante a potência do setor como gerador de renda para a economia e com qualidade artística que tem sido reconhecida nos principais festivais do mundo. Defender o enfraquecimento da Ancine nesse momento é condenar de morte um setor que gera empregos, movimenta a economia e tem um modelo de negócios invejável para outras áreas do governo, retornando o investimento em produtos e geração de renda para o país.

Então a próxima vez que falarem em filtros, sejamos consistentes: filtros? Já temos. É o que faz nosso audiovisual forte e potente como indústria e como veículo para fortalecer a identidade do Brasil.

* para quem quiser conferir, é só entrar no site do Fundo Setorial do Audiovisual, em chamadas públicas, e dar uma olhada nos anexos exigidos em cada uma. Ah, sim, tudo isso é público e fica disponível no site da Agência, inclusive com os links para as leis que regem seu funcionamento e transparência em relação aos valores de financiamento.

Manual de pequenas crueldades

(em tempos de transição)

 

Um casal divorciou depois de uma década juntos. Tudo amigavelmente. No dia seguinte ele estava com outra. Não tinha problema nenhum: aconteceu, essas coisas tem que ser vividas, não era traição. Mas na hora de contar para a ex, melhor segurar: não queria, afinal, ferir seus sentimentos. Uma coisa é fazer. Outra coisa é contar. E ela, por certo, devia estar se arrastando pelos cantos, sofrendo, devastada pelo término – o que cabe à mulher. Mulher é frágil demais.

Em um ônibus na avenida Paulista, um passageiro viu que a moça ao seu lado dormia e passou a mão nos seus seios. Mulher não repara. (Repara?) Ou se repara não liga. (Liga?) Ou se liga, não fala sobre isso.

Uma amiga foi a trabalho em um trajeto longo de metrô. Foi assediada três vezes no caminho, me contou. Numa delas, enquanto um Senhor falava lascivamente o quanto ela é linda, interrompeu-o de forma dura perguntando onde ficava a rua em que precisava ir. Ele desmontou: “Puxa, você falando assim direto comigo, eu não esperava… eu tô até tremendo”. Mulher que se coloca assusta.

O motorista de Cabify me falou que eu tinha “cara de neném” e me perguntou o que eu estava achando dos ‘meninos’ de BH, em comparação aos ‘meninos’ de São Paulo. Falei que sou casada e ele se retratou: “Então muda a pergunta: o que você está achando da cidade, está gostando daqui?” Mulher a que se deve respeito é a casada.

Ainda sobre o casal divorciado, uma amiga deu um toque que a atitude era machista (vá lá, também um pouco covarde). Vê-se que a notícia correu. Nessa semana, um desconhecido comentou numa mudança de foto de perfil dele “que foto machista”. Alguém completou “egoísta e infantil”. E no meio de risos “acho que você não tá respeitando a foto antiga”. Mulher atentar para uma atitude do homem é risível – em rodinha e em púbico. Mulher exagera.

Dentro de um ônibus municipal, passando pela avenida Paulista, no mesmo dia do ocorrido do assédio (e no mesmo dia de centenas de outros ocorridos de assédio, em centenas de outros lugares da cidade), um rapaz tirou o pau pra fora e gozou no pescoço de uma passageira – desconhecida. Foi levado pela PM. Com 17 tentativas de estupro na ficha , foi solto no mesmo dia. O Juiz sentenciou “Entendo que não houve constrangimento, tampouco violência ou grave ameaça, pois a vítima estava sentada no banco de ônibus, quando foi surpreendida pela ejaculação do indicado.” Afinal, não foi tão grave assim.

Hollywood não é aqui

“Pequeno Segredo” foi revelado como a escolha do Brasil para a disputa do Oscar de melhor filme estrangeiro. Para além de ter desbancado o favorito – e belíssimo – “Aquarius”,  o filme indicado só vai estrear em 10 de novembro, o que o colocaria fora da competição e apto à competição do ano que vem. Ele se valeu de um detalhe técnico, anunciando uma pré-estreia antes de 30 de setembro para poder participar. Que aliás, segundo matéria do UOL, nem data marcada tem. Como validar um filme sem carreira em festivais e que, como não estreou, não tem termômetro de crítica ou público no Brasil, como o representante do país?

filme-pequeno-segredo

O trailer revela uma estética publicitária, mais próxima de filmes estrangeiros, mas não dos que concorrem a filme estrangeiro no prêmio da Academia. O que é reforçado por parte do elenco ser de fora e grande parte do filme ser falada em inglês. E não é só o elenco: parte da equipe, entre cargos altos de direção e cargos menores de assistência é assumida por estrangeiros (o que vocês podem checar aqui, na sua página do imdb). Uma aposta para internacionalizá-lo – mas que diz muito sobre a valorização (ou não valorização) de um mercado que a muito custo se faz ouvir.

O que mais choca não é o deferimento de “Aquarius”, preferido para disputa, filme pungente e que, em tantos níveis (inclusive o artístico), escancara nas telas o Brasil. Mas sim os argumentos usados pelo comitê para selecionar o “Pequeno Segredo”. Pego as informações seguintes de uma matéria do G1, de 12 de setembro de 2016. As falas de seus membros são desoladoras:

Segundo Luiz Alberto Rodrigues “A gente considerou essa hipótese: que filme teria maior potencial para seduzir o júri da Academia a escolher como concorrente a filme de língua estrangeira?” Marcos Petrucelli, o pivô da discussão de legitimidade do comitê – frente a críticas que fez à manifestação política da equipe de “Aquarius” em Cannes – foi além: “A gente tentou encontrar um filme que tem essas características do cinema ‘da cartilha'”.

Declaradamente escolheram um filme que reproduz a estética de fora em detrimento do cinema que escancara o Brasil. Critério dúbio, já que não é essa a característica que a Academia valoriza nos filmes estrangeiros. Ou alguém acha que Almodóvar é indicado por reproduzir quase fielmente a estética hollywoodiana? Se acham que ele tem potencial para ser equiparado aos filmes norte-americanos – inclusive em equipe e estética –, há outros caminhos. Como estrear em circuito comercial de lá (uma semana em cartaz na região de Los Angeles já garante essa possibilidade) e concorrer de igual pra igual nas demais categorias.

Enquanto não valorizarem o cinema brasileiro como aquele que reproduz essencialmente as histórias e a estética nacional, com todas as suas falhas e percalços – que sabemos tanto que não são poucos, quanto que estão sendo vencidos com incentivo e muito suor nos últimos anos –, ele estará sempre assim. A um passo de ser desbancado.

As diversas telas para um diverso Brasil

Quando estava na faculdade de jornalismo, sonhando cinema enquanto concluía o curso, dizia por aí que eu gostaria de trabalhar com TV, mas não com conteúdos: com ficção para TV. Não me surpreende tanto eu estar trabalhando com isso agora, mas sim o quanto o mercado se transformou e se moldou a ponto de que trabalhar com TV, e com ficção para TV, seja normal. Um caminho como os outros, reconhecido e remunerado – uma década atrás seria impensável cobrar por um serviço de desenvolvimento, em editais que só contemplavam a filmagem em si.

Isso foi possível por uma série de medidas da Agência Nacional do Cinema (Ancine), entre elas o FUNDO SETORIAL DO AUDIOVISUAL, criado em 2001 e que desde 2011 recolhe recursos junto às empresas de telefonia (que em troca receberam o direito de operar a distribuição de pacotes de TV por assinatura). Longe de acomodar os profissionais, os editais de desenvolvimento criaram um mercado cada vez mais forte, focado na profissionalização. Pipocam agora cursos de formação – inclusive de formatação de projetos, essencial para os editais mas especialmente para a venda direta para canais, nesse novo momento do mercado que se construiu –, raros quando, apenas seis anos atrás, eu comecei como roteirista na área.

Em 2009 fiz como trabalho de conclusão de curso um documentário sobre a qualidade da televisão, em que diversos entrevistados do audiovisual falavam sobre o declínio da TV. Em um mundo em que tudo são telas, e tudo pode ser acessado ao prazer do usuário, antigos conceitos de qualidade caem e as audiências não conseguem se sustentar. Uma audiência fidelizada aos milhares vale mais que uma audiência morna aos milhões. Não é preciso mais atingir todos os públicos, de classe A a D, em todas as regiões, com uma programação única e pasteurizada. Mais que isso: tem-se acesso à produção de todo o mundo, e não apenas de um país. Nos últimos anos temos visto as emissoras públicas, serviços de streaming e TVs a cabo em desespero por conteúdos diferentes, de diferentes países e regiões, com diferentes sotaques, representando diferentes realidades, com um olhar jovem, que ouse em estrutura, em estética, em conteúdo. Conteúdo passa a ser a palavra-chave da nova era, e o meio, qualquer tela à sua disposição.

No ano passado, fui contemplada por diferentes linhas de editais do Fundo Setorial do Audiovisual, que também inverte a lógica que vinha sendo usada até então e foca na qualidade e não só no currículo como ponto forte para a premiação. Desenvolvi uma série infantil de animação pensada especialmente a partir experiências de crianças do nosso país, com a esperança de que isso tenha ecos positivos no mercado internacional. E trabalho agora em uma série de drama que a partir do ano que vem será veiculada pelas emissoras públicas do país, representando doze personagens, convivendo com as injustiças e dificuldades da nossa realidade. Inseridos na nossa cultura.  O modelo de Fundo proposto pela Ancine deu sim espaço para os profissionais antigos do mercado, como a adesão de globais e grandes diretores às campanhas #nãodeixeoaudiovisualmorrer e #EuConsumoAudiovisualNoMeuCelular – reforçada pela grande mídia – mostrou. Mas abriu a oportunidade para os jovens brasileiros construírem histórias jovens, para brasileiros, e que o mercado internacional, como a TV desmoronando em seu antigo modelo de grade, está ávido por consumir.

Nessa semana, às vésperas do recolhimento anual da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine), que é a principal fonte de recursos do FUNDO SETORIAL DO AUDIOVISUAL, o Sindicato Nacional das Empresas de Telefonia e de Serviço Móvel de celular e Pessoal (SindiTeleBrasil) que representa as empresas Claro, Oi, Telefonica/Vivo, Tim, dentre outras, obteve liminar na Justiça contra o pagamento da taxa. Não discordo que diante da alta taxa tributária o modelo possa ser repensado (a não se comentar a justificativa cara de pau das teles de que conteúdo audiovisual e telefonia, em pleno século XXI, não tem ligação). Mas que não seja rompido e atrase em muitos anos o que, finalmente, começa a se configurar como o mercado produtivo que deve ser, munindo-se da criatividade, irreverência e tradição artística do país.

Dos muitos textos que saíram na mídia sobre o assunto, me acalentou o peito ler a ponderação justa e equilibrada do cineasta Cacá Diegues em sua coluna “A cultura das teles”, n’O Globo de 21 de fevereiro: “Há sempre espaço para novos pactos, mas a forma de travar esse debate não pode ser a violência unilateral de uma ação judicial; é preciso que todos os interessados se sentem à mesa, para rediscutir o mecanismo. (…) Se a liminar for cassada, como deve ser justo que aconteça, o Fundo Setorial do Audiovisual terá, em 2016, R$ 1,135 bilhão da Condecine (bem menos que o total das isenções oferecidas à indústria automobilística que engarrafa e polui nossas ruas), para aplicar na produção de todas as tendências do audiovisual brasileiro, dos grandes sucessos populares, como ‘Loucas para casar’ e ‘Até que a sorte nos separe’, aos filmes com reconhecimento artístico, como os recentes ‘O menino e o mundo’, candidato ao Oscar deste ano, ou ‘Que horas ela volta?’, triunfo internacional premiado no Festival de Berlim. O audiovisual brasileiro poderá seguir reproduzindo com generosidade a diversidade do país, a respeitar o gosto do público e dar apoio aos que desejam mudá-lo.”

O Fundo Setorial do Audiovisual, como se estruturou, acaba com uma característica nociva do audiovisual brasileiro, controlado pela estética de novelas, que reproduz um ponto de vista único e uma única cultura (frequentemente transformando em paródia sotaques, fisionomias e características de outros locais). Um único modo de fazer que, cá entre nós, nem a TV tradicional aguenta mais. Com foco em descentralizar a produção, a Ancine, por meio do Fundo Setorial do Audiovisual, está tornando possível que os diversos Brasis com os quais não convivemos deem suas caras, em um mercado que não só precisava crescer, mas precisava se profissionalizar. Nos últimos anos, com o incentivo do FSA, o mimimi de não temos roteiristas no mercado deu lugar à demanda de todos os profissionais da área, e mostramos que, com o investimento certo, nosso audiovisual pode voar.

*** Conheça mais sobre essa história toda e apoie a causa assinando a petição no link: NÃO DEIXE O AUDIOVISUAL MORRER ***