Por todas nós

Não costumo falar sobre abusos ou sobre assédio em público. É um assunto que me toca e faz com que eu me sinta extremamente vulnerável. É um assunto privado, a sociedade me ensinou a acreditar.

Minha irmã me falou outro dia, quando da discussão do caso Mari Ferrer (cuja sentença foi classificada com razão pelo The Intercept como “estupro culposo”) que para as mulheres essas questões tocam tanto porque a cada nova notícia dessas revivemos os nossos próprios abusos. Tive que ouvir muita besteira de homem falando sobre o caso da influenciadora digital. Porque para os homens a primeira reação ao ouvir uma mulher denunciando um assédio é “será que ela está falando a verdade?”. Para as mulheres é: “Igualzinho o que eu já vivi”, ou “Isso pode acontecer comigo também.”

O vídeo que viralizou da Deputada Estadual Isa Penna sendo assediada por um colega da Alesp com casa lotada e na frente do Presidente da Assembleia é de revirar o estômago. Um colega sensível questionou, atônito, por suas redes “se isso aconteceu em um lugar público lotado, imagino o que as mulheres vivem em outros ambientes”. Sim. Vivemos. Repetidas vezes. Desde a infância.

Meu primeiro abuso foi logo antes de completar 11 anos. Um adolescente do colegial apertou a minha bunda no corredor da escola. Eu olhei pra ele brava, o amigo dele ficou meio besta “pô, sacanagem!” e ele riu. Riu muito. Não acho que ele fez isso por tesão por uma criança pré-puberdade. Acho que ele fez, e riu, porque sentia que podia.

Não foi o único abuso que eu sofri. Nem foi o pior.

Também vi muitos assédios acontecerem com amigas, colegas, conhecidas. Lembrei da monitora de recreação de férias quando eu era bem pequena e que os adolescentes mimados do grupo falavam que era fácil passar a mão. E do constrangimento dela que eu presenciei em uma dessas ocasiões, que eu fui entender esse ano o que era, o constrangimento de alguém que sofreria mais denunciando um jovem de família rica do que silenciando pra manter seu emprego. Para eles, era “fácil”.

Devemos lembrar, sempre, que esses assédios, mais que sexuais, são para exercer uma relação de poder. Dá pra ver isso no vídeo em que fica claro o absurdo a que foi submetida a Deputada Isa Penna (repito o Deputada não por acaso). O jeito que o abusador Fernando Cury se aproxima sendo dissuadido por um colega, que puxa seu braço (teria falado sobre isso antes com o colega?). O jeito dissimulado com que mantém os olhos fixos no Presidente enquanto ela afasta seu corpo com repugnância. Lembro das vezes em que eu pensei se não seria só impressão que o pau duro do cara ou a mão dele roçou em mim, já que estava passando ou olhando para outro lado. O olhar dissimulado do homem abusador e a dúvida que de dúvida nada tem da mulher abusada.

Me identifico com o abuso de Isa Penna. Me vejo, também, e completamente, na fragilidade dela no dia seguinte ao abuso. No choro por raiva, por ser coagida, através da violação do seu corpo, a não pertencer a esse espaço ao qual teve direito com 53 mil votos. No toque indesejado que fica para sempre na pele, a atravessa e dilacera por dentro. Na violência institucional de um sistema que faz de tudo para que situações como essa se perpetuem e não sejam criminalizadas.

Hoje chorei junto com a Deputada Isa Penna, que implora “Eu sou uma mulher jovem eleita e tenho o direito de estar aqui sem ser apalpada, sem ser assediada.” Pelo direito que, na verdade, não temos. Pelas verdades que temos que silenciar. Pelos abusos que sofremos. Repetidas vezes. Para não pertencer.

Acesse o abaixo-assinado pela cassação do mandato do deputado Fernando Cury em: https://www.feminista.me/justicaportodas