Sorte revés

Funcionalismo público é uma dessas coisas imprevisíveis, e por mais que nos organizemos nunca sabemos se o dia em que precisamos de um serviço vai ser de sorte ou revés.

Acordei antes das sete, para estar no Ministério do Trabalho logo cedo, pegar minha senha, ser atendida antes das enormes filas se formarem, e esperar o prazo de 25 dias para receber o meu DRT. Cheguei às 5 pras 8, cinco minutos antes do atendimento abrir. Uma senhora simpática me recebeu: “já fez o agendamento?” Ixi, agendamento… tem que agendar? É por telefone? Era ao vivo – menos mal, não perdi a viagem. Sorte. Não tinha pro dia seguinte, no outro eu viajava e na outra semana não estaria em São Paulo. Revés.

Sugeri que marcasse na segunda-feira seguinte e a mulher respondeu em negativa “longe assim [uma semana depois] a gente não marca”. Devo ter feito uma cara muito triste, porque ela olhou para um lado e para o outro, puxou um papel e me escreveu um número de telefone sem nenhuma indicação. Depois disse olhando fundo nos meus olhos: “esse número é desse telefone aqui (chegou a pegar o telefone no balcão), liga mais pra frente, que a agenda vai estar aberta”. Saí, 5 minutos e 8 reais de estacionamento depois.

Segunda parada: Biblioteca Nacional, procedimento padrão de registro de roteiro: cópia simples de RG, CPF, comprovante de residência (pode ser até de 2010 que eles não ligam), ficha de inscrição assinada,  roteiro com páginas numeradas e rubricadas, tudo em pasta de duas perfurações modelo arquivo. Por anos funcionou na Biblioteca Nacional uma pequena máfia das pastas arquivo: “xiii, você não trouxe na pasta perfurada? Vendemos aqui, por três reais.” Me contaram lá mesmo que não precisa mais dela ― espero ansiosa pelo dia que não precisarei mais, a cada roteiro, entregar impresso RG, CPF e comprovante de residência, que já devem lotar, lá em Brasília, salas e salas de documentação.

Aprendi com o tempo a chegar lá com tudo pronto, entregar, receber um carimbo e sair com o protocolo em cinco minutos, triunfante (inclusive aprendi o portão onde não tem usuários de craque ― a Funarte fica no meio da antiga cracolândia, na Santa Cecília). Sorte. Mas faltava ainda pagar a Guia de Recolhimento da União na boca do caixa e o Banco do Brasil estava em greve. Revés.

Foi assim que conheci Maria Lúcia. O Banco do Brasil estava cheio de senhores e senhoras que pediam, um a um, a uma única atendente enlouquecida que os ensinasse a usar o caixa eletrônico ― o que até então não haviam precisado. A própria Maria Lúcia nunca tinha registrado a senha do seu cartão. Ela puxou assunto, e eu só precisava de alguém com cartão do Banco do Brasil pra pagar a minha GRU. Sorte.

“Pagar sua conta? Claro que eu pago, só pergunta pra moça ali se tudo bem e eu pago, tudo bem.” A “moça ali” era a única atendente enlouquecida, que se descabelava entre as reivindicações. Passei por duas ou três senhoras, que insistiam em ajuda para usar o caixa, e a atendente confirmou que tudo bem. Pagamos. Entreguei 20 reais (o valor do registro) na mão da dona Maria Lúcia, disse que ela salvou o meu dia, desejei a ela um bom dia e saí.

Desci até a Biblioteca Nacional, entreguei toda a documentação e já me preparava para sair triunfante quando a funcionária me avisa: o comprovante de pagamento veio sem a autenticação. Por algum motivo (a esse ponto eu ainda não sabia), o pagamento saiu agendado para o dia seguinte. Se estava agendado, não contava como pagamento, e se não contava como pagamento não podia registrar.

Nesse ponto eu ― que afinal tinha acordado antes das seis da manhã, e todos esses trâmites depois já eram quase 11 ― estava a ponto de me descabelar como a atendente do Banco do Brasil. A funcionária continuava: se não estava pago, eu tinha uma alternativa muito clara: olhar na minha conta porque o pagamento não caiu, esperar cair e levar a autenticação. Tirando que a conta não era minha, e eu não tinha mais nenhuma forma de entrar em contato com a dona Maria Lúcia (além de saber o nome completo dela pelo papel). A segunda alternativa era pagar de novo, o que já seria uma tarefa terrível em dias normais (não queiram ter que enfrentar a fila da boca do caixa do Banco do Brasil) e era impossível por causa da greve. Eu teria que convencer outra pessoa simpática a pagar pra mim, com o risco de sair novamente sem a autenticação.

Apelei para a lógica ― se o pagamento estava agendado, significava que no dia seguinte ele seria pago. A conta geral da União ia receber os 20 reais do registro, quer quiséssemos quer não. Concordaram, todas as moças atrás do balcão. Mas nada podiam fazer ― sem o número de autenticação, não vai. É que o funcionalismo público não funciona com lógica, funciona com regras. E a regra é o número de autenticação ― continuávamos a discussão minutos depois, todos do mesmo lado e todos sem saber o que fazer. Já estavam me indicando qual agência estaria supostamente aberta apesar da greve – ainda seria um ônibus, metrô, ida e volta, e sem garantias.

Lembrei da confirmação da moça do banco: mas foi a moça do banco quem falou! Ah, foi a moça quem falou? Uma perguntava de cá, e outra respondia dali: foi a moça quem falou! Vou tentar falar com a moça! Tenta falar com a moça! As funcionárias me incentivavam, e saí de lá com uma falsa esperança que a cada passo mais perto do banco me trazia mais clara a noção de que ia acabar tendo, novamente, e dessa vez com a atendente descabelada, a mesma conversa de que não havia nada a fazer.

Uma ladeira depois, a mesma entrada do  Banco do Brasil, coisa de 30 minutos depois que saí, repensando as coisas erradas por que meu dia passou. Olho ao longe e vejo que a atendente mudou. Revés.

― Você voltou?
Quem perguntou foi a dona Maria Lúcia, ainda parada no mesmo caixa com a sua conta na mão.

― Dona Maria Lúcia! Deu tudo errado! A senhora nem sabe! Ainda bem que a senhora está aqui!

Dona Maria Lúcia só ria, e me explicou que a nova atendente tinha falado um monte na cabeça dela, que não se deve pagar conta pra qualquer um, e como que ela pagava assim, sem nem saber quem era, porque era, e etc. e tal. E eu tirando a conta da mochila, pra apresentar pra dona Maria Lúcia e pra nova atendente ― essa não descabelada e ainda bem disposta.

A atendente entregou a senha e sorriu ao me ver: “Você deu a maior sorte, ela está há 30 minutos aqui no Banco, o procedimento dela deu errado. Se tivesse dado certo ela teria saído 5 minutos atrás”. Expliquei a situação. Cancelou o primeiro pagamento – tinha sido agendado por uma falha minha, e minha mania de não saber que dia é hoje. Refez a transação: “depois dessa não dá mais pra cancelar, hein?”

A máquina imprimiu, dessa vez com a autenticação. “Dona Maria Lúcia! Se eu ganhar esse edital e conseguir fazer meu filme a senhora vai pros agradecimentos!”

“Essa eu vou cobrar hein? Com juros!” Ela sorria do lado de lá. Atrás de nós, a atendente que teria um longo dia pela frente ainda sorriu: “nossa, com uma declaração assim – boa sorte”.

As funcionárias da Biblioteca Nacional não acreditaram quando me viram voltar (elas também, como eu, não esperavam), e contar a história da dona Maria Lúcia que, por azar, ainda não tinha completado sua operação.