As diversas telas para um diverso Brasil

Quando estava na faculdade de jornalismo, sonhando cinema enquanto concluía o curso, dizia por aí que eu gostaria de trabalhar com TV, mas não com conteúdos: com ficção para TV. Não me surpreende tanto eu estar trabalhando com isso agora, mas sim o quanto o mercado se transformou e se moldou a ponto de que trabalhar com TV, e com ficção para TV, seja normal. Um caminho como os outros, reconhecido e remunerado – uma década atrás seria impensável cobrar por um serviço de desenvolvimento, em editais que só contemplavam a filmagem em si.

Isso foi possível por uma série de medidas da Agência Nacional do Cinema (Ancine), entre elas o FUNDO SETORIAL DO AUDIOVISUAL, criado em 2001 e que desde 2011 recolhe recursos junto às empresas de telefonia (que em troca receberam o direito de operar a distribuição de pacotes de TV por assinatura). Longe de acomodar os profissionais, os editais de desenvolvimento criaram um mercado cada vez mais forte, focado na profissionalização. Pipocam agora cursos de formação – inclusive de formatação de projetos, essencial para os editais mas especialmente para a venda direta para canais, nesse novo momento do mercado que se construiu –, raros quando, apenas seis anos atrás, eu comecei como roteirista na área.

Em 2009 fiz como trabalho de conclusão de curso um documentário sobre a qualidade da televisão, em que diversos entrevistados do audiovisual falavam sobre o declínio da TV. Em um mundo em que tudo são telas, e tudo pode ser acessado ao prazer do usuário, antigos conceitos de qualidade caem e as audiências não conseguem se sustentar. Uma audiência fidelizada aos milhares vale mais que uma audiência morna aos milhões. Não é preciso mais atingir todos os públicos, de classe A a D, em todas as regiões, com uma programação única e pasteurizada. Mais que isso: tem-se acesso à produção de todo o mundo, e não apenas de um país. Nos últimos anos temos visto as emissoras públicas, serviços de streaming e TVs a cabo em desespero por conteúdos diferentes, de diferentes países e regiões, com diferentes sotaques, representando diferentes realidades, com um olhar jovem, que ouse em estrutura, em estética, em conteúdo. Conteúdo passa a ser a palavra-chave da nova era, e o meio, qualquer tela à sua disposição.

No ano passado, fui contemplada por diferentes linhas de editais do Fundo Setorial do Audiovisual, que também inverte a lógica que vinha sendo usada até então e foca na qualidade e não só no currículo como ponto forte para a premiação. Desenvolvi uma série infantil de animação pensada especialmente a partir experiências de crianças do nosso país, com a esperança de que isso tenha ecos positivos no mercado internacional. E trabalho agora em uma série de drama que a partir do ano que vem será veiculada pelas emissoras públicas do país, representando doze personagens, convivendo com as injustiças e dificuldades da nossa realidade. Inseridos na nossa cultura.  O modelo de Fundo proposto pela Ancine deu sim espaço para os profissionais antigos do mercado, como a adesão de globais e grandes diretores às campanhas #nãodeixeoaudiovisualmorrer e #EuConsumoAudiovisualNoMeuCelular – reforçada pela grande mídia – mostrou. Mas abriu a oportunidade para os jovens brasileiros construírem histórias jovens, para brasileiros, e que o mercado internacional, como a TV desmoronando em seu antigo modelo de grade, está ávido por consumir.

Nessa semana, às vésperas do recolhimento anual da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine), que é a principal fonte de recursos do FUNDO SETORIAL DO AUDIOVISUAL, o Sindicato Nacional das Empresas de Telefonia e de Serviço Móvel de celular e Pessoal (SindiTeleBrasil) que representa as empresas Claro, Oi, Telefonica/Vivo, Tim, dentre outras, obteve liminar na Justiça contra o pagamento da taxa. Não discordo que diante da alta taxa tributária o modelo possa ser repensado (a não se comentar a justificativa cara de pau das teles de que conteúdo audiovisual e telefonia, em pleno século XXI, não tem ligação). Mas que não seja rompido e atrase em muitos anos o que, finalmente, começa a se configurar como o mercado produtivo que deve ser, munindo-se da criatividade, irreverência e tradição artística do país.

Dos muitos textos que saíram na mídia sobre o assunto, me acalentou o peito ler a ponderação justa e equilibrada do cineasta Cacá Diegues em sua coluna “A cultura das teles”, n’O Globo de 21 de fevereiro: “Há sempre espaço para novos pactos, mas a forma de travar esse debate não pode ser a violência unilateral de uma ação judicial; é preciso que todos os interessados se sentem à mesa, para rediscutir o mecanismo. (…) Se a liminar for cassada, como deve ser justo que aconteça, o Fundo Setorial do Audiovisual terá, em 2016, R$ 1,135 bilhão da Condecine (bem menos que o total das isenções oferecidas à indústria automobilística que engarrafa e polui nossas ruas), para aplicar na produção de todas as tendências do audiovisual brasileiro, dos grandes sucessos populares, como ‘Loucas para casar’ e ‘Até que a sorte nos separe’, aos filmes com reconhecimento artístico, como os recentes ‘O menino e o mundo’, candidato ao Oscar deste ano, ou ‘Que horas ela volta?’, triunfo internacional premiado no Festival de Berlim. O audiovisual brasileiro poderá seguir reproduzindo com generosidade a diversidade do país, a respeitar o gosto do público e dar apoio aos que desejam mudá-lo.”

O Fundo Setorial do Audiovisual, como se estruturou, acaba com uma característica nociva do audiovisual brasileiro, controlado pela estética de novelas, que reproduz um ponto de vista único e uma única cultura (frequentemente transformando em paródia sotaques, fisionomias e características de outros locais). Um único modo de fazer que, cá entre nós, nem a TV tradicional aguenta mais. Com foco em descentralizar a produção, a Ancine, por meio do Fundo Setorial do Audiovisual, está tornando possível que os diversos Brasis com os quais não convivemos deem suas caras, em um mercado que não só precisava crescer, mas precisava se profissionalizar. Nos últimos anos, com o incentivo do FSA, o mimimi de não temos roteiristas no mercado deu lugar à demanda de todos os profissionais da área, e mostramos que, com o investimento certo, nosso audiovisual pode voar.

*** Conheça mais sobre essa história toda e apoie a causa assinando a petição no link: NÃO DEIXE O AUDIOVISUAL MORRER ***