Semana passada, então, fui dormir na casa dos meus pais. Minha mãe disse “LAURA!” e algo depois como “boa noite”, “vou abrir sua janela que está calor!” ou qualquer outra coisa que não vem ao caso. Tomei um susto daqueles, reagi com exclamações. Ela respondeu calmamente:
– Laura, o que você estava lendo?
“O VENTO fresco da madrugada entrou pela janela e veio suavemente tirar-me do sono. Sem abrir os olhos, o corpo imóvel, percebi que havia acordado. De súbito o sangue gelou-me nas veias: senti uma presença dentro do quarto. Uma presença macia, envolvente, feita de silêncio e escuridão. Abri finalmente os olhos – o silêncio se abateu sobre mim e a escuridão ficou maior. Por um instante não tive forças de me mexer e era como se eu estivesse morto, envolto em mortalha. Desfiz-me afinal dos lençóis e levantei-me de um salto, avancei precipitadamente para o interruptor da luz junto à porta. Quando meus dedos ansiosos tateavam na parede, pousaram de leve em algo frio, áspero e crispado, que vinham a ser exatamente os dedos de uma outra mão.
ESTA história evidentemente não aconteceu comigo, nem com ninguém. Acabei de inventá-la, para desafiar a sensação de insegurança que me deu de repente, ao ver-me aqui sozinho em meu quarto, em plena madrugada, escrevendo esta crônica.”
Nessa hora minha mãe entrou no quarto dizendo “LAURA!” e qualquer outra coisa que não vem ao caso.
O trecho está no livro “No fim dá certo”, de Fernando Sabino, na crônica “Viver é perigoso”. Comprei-o semana passada em um sebo, e entre “De cair o queixo” e “Sob o manto da fantasia”, aconteceu-me a coisa mais extraordinária que pode acontecer a alguém com pretensões literárias (ou quase): encontrei uma carta.
Tinha ido diretamente à estante de literatura brasileira, e pegado apenas o “No fim dá certo” – cópia muito bem conservada e que eu ainda não tenho, dois atributos raros para as publicações do Fernando Sabino (muito numerosas) em sebos. Levei-o como uma preciosidade ao caixa (a carta ao meio). A mulher olhou o código (a carta vai cair…), a mulher me olhou com um sorriso. “Esse aqui, olha lá, tem na promoção de dois a cinco reais. Não quer ver lá?” No cantinho subindo as escadas. Mas eu não queria, queria era aquele! Voltei ao caixa um pouquinho depois. “Não encontrei (não encontrei, realmente) levo esse mesmo”.
Guardei o livro aflita – com medo ainda de que a vendedora reivindicasse a minha carta. Minha. Envelopada, selada, com remetente de Milão e destinatário de Pinheiros (os selos, ambos de Milão), duas páginas manuscritas em papel de seda, em francês. Não a peguei mais, com medo de manchá-la com as mãos sujas da rua, depois de molhá-la com respingos de chuva (nesse dia choveu).
Finalmente a li, com alguma dificuldade entre o manuscrito e o francês. Quando repeti que me acontecera a coisa mais extraordinária no sebo, já anunciava o pragmatismo da minha mãe: “às vezes também não é nada”. Datada de 1999, Milão, um senhorzinho reclamando da artrite, agradecendo ao outro por ter pago um imposto, e mandando lembranças pra outra senhora, também doente. E não era. Pelo menos o livro era bom.
Melhor do que isso só quando li na contracapa de O Gato Sou Eu (aliás, livro do Sabino que na ocasião não comprei e que não tenho até hoje): “Seguinte: o Paulo vai ligar sem ficha. Você espera 5’ e sai. Depois eu saio também”.