Obrigada, Antonio Prata

Quando estava no segundo colegial, fui a um debate do Serra na minha escola − o Colégio Bandeirantes, cheia de panfletos dizendo que escola não era lugar para partidarismos. Um dos diretores me puxou pelo braço, disse que eu não podia estar ali (o que era mentira, o evento era aberto e me receberam com sorrisos e adesivos do candidato antes de verem os panfletos) e que tinha ligado pessoalmente para o diretor-presidente marcando uma reunião comigo. Saí arrasada, comecei a chorar no corredor. Fui levada a uma sala, com a presença de dois funcionários do departamento “cultural”, onde desabafei entre soluços que ia ser melhor assim, que poderia então falar tudo o que pensava para o diretor-presidente − antes de perceber que o outro diretor não tinha anotado meu nome, turma, nada! E que obviamente a reunião era fictícia.

Fiz contatos mais próximos e marquei eu mesma a reunião, à qual compareci com os panfletos debaixo do braço, e fui recebida com os panfletos já na mesa pelo diretor-presidente e pelo diretor pedagógico (que bom, vi que já receberam…). Tivemos uma conversa séria e objetiva. Falaram sobre as minhas notas (já tinham puxado meu histórico, que sempre foi impecável), comentaram amigavelmente minhas notas baixas em matemática e pudemos rir sobre como eu não entendo álgebra. Expus que a violência à qual eu fui submetida seria aceitável vinda de uma pessoa ignorante, mas nunca de um dos diretores da escola – único momento da reunião inteira em que o sorriso saiu da cara dos dois.

A justificativa para eu ter sido tirada de lá? (lembro até hoje das palavras, exatas, vindas do mesmo diretor): a minha segurança.

Tenho uma relação muito amigável com os funcionários e professores de lá, e alguma admiração pelo formato das aulas, embora tenha muitas ressalvas sobre o sistema de ensino. Mas sempre fui categórica em que não quero meus filhos lá, para espanto da maioria dos meus amigos. O meu ideal de escola é uma que aplauda atitudes tão maravilhosas como um grupo de alunos que se solidariza com a causa de um, e não uma que isole essa atitude.

Deixar ou não o aluno ir de saia não tem a ver com a escola deixar, no dia a dia, cada aluno vestir a roupa que quer. Aliás, tem pouco ou nada a ver com roupas. Isso tem a ver com uma escola que acha que tem que limitar os alunos, porque “o mundo é assim”.

Tudo isso pra dizer: obrigada, Antonio Prata. (“Entre ou saia”/ Folha de S. Paulo).

O susto do susto da Virada – seguimos tentando

Fiquei assustada com o susto das pessoas em relação à Virada Cultural desse ano. Estive no evento, não vi nada de anormal. Soube de gente que viu o arrastão e desistiu do domingo, diz que foi tenso. Mas soube de gente, muita gente, que não foi pro Centro pra não ser assaltado. Como se ir pro centro significasse necessariamente sofrer algum tipo de assédio. Minha mãe completou: e como se fora da Virada a gente não corresse o risco igual.

Sou defensora da Virada uma vez por ano (ao contrário dos que pedem que a verba seja diluída pelo ano todo), e sou defensora do evento concentrado no Centro. Gosto da ideia de muitas coisas acontecendo ao mesmo tempo, da indecisão deliciosa de um ou outro show (nesse ano um melhor que o outro). Gosto da ideia de encontrar, em um mesmo lugar, gente de todo tipo: quem vai pro funk batidão, quem vai pro rock, quem dança forró. Gente de todo o Brasil vindo pra ver gente de todo Brasil tocar em homenagem à cidade. E o mais bonito de tudo: ocupando o Centro. Ocupar São Paulo, o que nos dias normais não podemos ― justamente por insegurança.

Acho que a Virada, com o passar dos anos, virou o nosso carnaval. De rua. Mas São Paulo ainda tem muito o que aprender em relação a eventos de rua ― quanto mais aos grandes eventos de rua. Esse ano não vi nada de anormal, mas evitei a madrugada. Nos outros anos reparei que o clima cai muito, a energia que devia ser pros shows fica em tomar porre e cair pela sarjeta e o clima geral é baixo astral. Ano passado ― ou foi no retrasado? ―, particularmente, ao andar pelo centro de madrugada senti total insegurança, que nesse ano tentei evitar.

Podíamos tomar como exemplo a segurança do carnaval de Salvador (também concentrado), onde cada bloco e cada show tem um estande de policiais supervisionando a multidão. É preciso foco especialmente no caminho entre os palcos ― e guardas montadas entre os palcos e junto aos palcos. Só que lá eles tem 60 anos de trio pra sacar como fazer a segurança… O que não podemos é jogar no lixo o evento mais bonito que nos foi oferecido. “Não vou porque é inseguro. Vou pro Sesc…” e a cidade volta a ser ocupada pelo que não lhe representa.

No domingo, presenciamos um momento imperdível que foi a homenagem a Paulo Vanzolini (não à toa um ícone da cidade) que nos deixou há 20 dias. Sem tom de tristeza ou lamento, o clima foi de homenagem e celebração, como a Virada como um todo deve ser. São 4 milhões de pessoas. Assaltos, duas mortes, mas quatro milhões de pessoas. Não é pouco, e nem a virada pode ser resumida aos assaltos e mortes. Se fosse pra sair na rua pra ser assaltada, também eu não sairia ― a Virada foi, e é, muito mais.

Mais interpretações sobre o assunto: Quando a apuração tendenciosa é evidente | Valter Hugo Muniz
Do site oficial da Virada Cultural 2013: Virada 2013: os problemas & as soluções | Pedro Alexandre Sanches

Diário do Rio

Dia número 36: aeroporto Santos Dumont fechado devido a questões meteorológicas. Primeiro dia de chuva e névoa, primeiro dia que resolvo voltar a São Paulo de avião.

Conheci muita gente nas filas, até o aeroporto reabrir, às 16h. Depois mais quatro horas de espera até entrar em algum voo. Conheci uma senhora gaúcha, de Juiz de Fora e de mudança pra Mogi das Cruzes. De voz doce e paciente, me contou que era catequista, mas depois virou evangelizadora espírita (ela deve ser boa, porque no geral não gosto de ninguém que fale pros outros de deus – mas dela eu gostei de ouvir).

Cinco aeronaves em pista, a primeira foi pra Brasília, a segunda pra Vitória, as outras três chamavam em ordem os passageiros remanescentes dos voos pra São Paulo. 3901 e 3903 (das 6 da manhã), depois os das 9h, 10h, 11h… (o meu era das 17h15). A cada vaga livre, quem não tivesse bagagem despachada podia tentar entrar. Olhei meu voo: 3945 (tinha todos os números ímpares desde o 3901 antes pra serem chamados).

A segunda aeronave saiu do portão 7 (estávamos no 2). Saímos todos correndo, as malas de rodinha deslizando no chão – parecia corrida maluca e só faltava rasteira. Não entrei. O próximo sairia do portão 2, e o seguinte do 10 (lá embaixo). Voltei. A senhora me olhou – ela era do 3929 – “você vai no mesmo voo que o meu”. Olhei de novo pro bilhete: 3945.

Segui pro portão 10, onde fiz amizade com vários meninos do voo 3935. Criamos um grupo pra exigir que chamassem pela ordem dos voos (o que no fim nem me favorecia). Não entrei (não entramos). Voo 3905, 3911, 3919 e 3923 (vira e mexe chegava alguém perguntando – é no portão 10, lá embaixo!). Pausa. Nova diretriz: sem aeronaves na pista, os voos não tem previsão de horário – e toda vez que ouvir um anúncio da Tam, pode se dirigir ao portão para tentar embarcar.

Voo 3929, portão 8. Vi a senhora passar ao longe. À minha frente, os meninos do 3935, com a certeza de que nesse eles iam. O líder do grupo foi conversar com o funcionário para chamar os voos em ordem (tinha gente do 3953 que ia entrar na frente, não fosse isso).

Entraram todos do 3929 (e a essa hora, ao contrário dos voos da manhã, era muita gente que tinha esperado pra ver). Depois chamaram: 3931. 3931! Passageiros do 3931 SEM BAGAGEM! Os meninos apreensivos. 3933! Alguém lá atrás gritou “3933, aqui!”, abre espaço na multidão pra pessoa passar. Mais dois ou três. Nova chamada. 3935! Entraram todos os meninos, enquanto eu me agarrava à passagem. 3937! Mais alguns. 3939! Mais.

Os passageiros do 395… faziam tumulto.

Repetiu todos os números: 3939, 3937 e todos os anteriores! Mais alguém?

Os passageiros do 50 e poucos gritavam que não. Mais um ou outro se aproximava do portão com as passagens em mãos.

3941!

Olhei a passagem: “o meu é 3945” – então vai lá pra frente que daqui a pouco vai ser o seu, a mulher me disse e me empurrou um pouco mais à frente. Fiquei na cara da porta de vidro. Mas muita gente já tinha entrado. Volta o comissário pro avião pra contagem.

3943! Entraram mais dois. Silêncio, o funcionário de terra olhava para trás.

“Eu sou 3945”. “3945 não.” 3943, alguém? Mais espera.

3945!

Uhuuu! E o funcionário me disse sem nenhuma empolgação: “é, uhu, vai lá.”

Entrei correndo, mas o avião ainda ia ficar parado mais um tempo por lá.

A senhora, já sentada, me olhou em cheio: “eu disse que você vinha no mesmo voo que eu”. Atrás dela, os meninos do 3935 comemoraram que eu entrei.

À direita, a outra senhora que tinha medo (mas não de avião, da vida), me cumprimentou, antes de eu sentar junto a um engenheiro do Recife que mora há 15 anos no Rio e volta todo fim de semana pra lá pra encontrar a mulher e os filhos. Ele parecia o Stepan Nercessian, mas isso eu só reparei quando o avião pousava em São Paulo, e eu descia chorando de lá.

diário completo em: http://lauriebarile.tumblr.com/

Considerações sobre ter 80 anos – (mas eu não tenho)

Na semana passada assisti a uma palestra interessantíssima da Suzana Amaral – diretora de “A hora da estrela” (1985) – sobre cinema e literatura, e a obra de Clarice Lispector, parte do curso da Maria Lúcia Homem no MIS (que durante o curso também integrava à interpretação aspectos da psicanálise). Achei que seria bom porque gosto de literatura, porque gosto de cinema, porque gosto de A hora da estrela da Clarice, mas principalmente porque gosto muito da adaptação da Suzana.

Adaptação pra cinema é uma das coisas mais enganosas que existem. Quase tanto quanto tocar pandeiro (mas isso é outra história, de que todo brasileiro acha que sabe tocar pandeiro…). Caí na armadilha com o meu trabalho de conclusão do curso de cinema: um roteiro de longa, mas que não daria tanto trabalho porque era só uma adaptação. Amarga ilusão. Adaptação literária é algo deliciosamente trabalhoso, algo que só conseguimos superar ao perceber que, sim, vamos ter que mudar a história – sob a pena de não conseguir atingir a essência do que foi passado pelo escritor.

Pois a Suzana Amaral, além de ter essa percepção aguda (e muito mais bem desenvolvida que a minha) em relação a literatura e cinema, ainda tem o tom enfático e extraordinário das pessoas de 80 anos (no caso dela, 81).  – Suzana como foi seu processo? – Intuição. – E como você faz… – Intuição. – E o que você acha… – Intuição. “Você tem que fazer o que você quer, e o que você não quer você não faz.” Ela não chama de “essência” e sim de “espírito”, nem de “adaptação”, mas sim de “transmutação”.

Lembrou-me a Lygia Fagundes Telles (de quem vi uma fala no ano passado), falando de modo tão certeiro sobre vocação, nesse mesmo limite de fazer no mundo o que lhe cabe. E com a mesma certeza. “Eu me fiz dentro do cinema”, contou a Suzana, que diz que estava na área já desde os sete anos, e começou a estudar com 38, na ECA – o que fez dos 7 aos 38? “Tive filhos!” Foram 9, ao longo de 10 anos – experiência adquirida suficiente pra conseguir lidar com qualquer ator, segundo ela.

Foi contando então, com seu jeito de oitenta anos (esse jeito de ter certezas que vem somente da emoção) como é seu processo criativo, de como nunca categorizou as coisas: “a preocupação da ideia é ter ideias. O negócio é trabalhar e pensar, pensar, pensar e sentir, pensar e sentir, pensar e sentir”, “eu fui fazendo, e quanto mais eu estudava mais eu encontrava o meu caminho.” E eu – fui me encantando com a possibilidade de ter 80 anos. Não sei se chego, mas ia gostar muito de chegar. Um professor (de viola, mas isso é outra história…) me disse sobre o estudo que aos poucos eu vou ter que ter menos aulas, por perceber o mundo de coisas que é preciso aprender e entender, e precisar de mais tempo para processar cada informação. “Quanto mais velho eu fico menos certezas eu tenho”.

Tentei até levar pra terapia: eu queria ter 80 anos! Mas isso é só mais um jeito atrapalhado de ter vinte e poucos – que, com todas as certezas tolas que aprendemos, é preciso aproveitar.

Sobre os gatos e a vida dos freelas

Ninguém sabe ao certo porque os gatos dormem tanto – mas uma hipótese, e tanto, é de que eles guardam o máximo de energia para suas caçadas. Explica muito para quem tem um gato: não raro eles acordam e correm inexplicavelmente e inexplicavelmente rápido pela casa. Dessa forma, dizem os especialistas, o ataque é certeiro.

Duas coisas nessa semana me lembraram a lógica dos gatos:

A primeira foi a entrevista da Clarice Lispector para a TV Cultura de 1977: “não sou profissional”, ela diz.  “Eu só escrevo quando eu quero. (…) Profissional é aquele que tem uma obrigação consigo mesmo de escrever, ou em relação ao outro. Eu faço questão de não ser uma profissional, para manter minha liberdade”. Depois descreve os períodos alternados entre a produção intensa e hiatos. Lembrei imediatamente do Fernando Sabino − que sempre dizia que o que atrapalhava seus romances era a necessidade de escrever para ganhar dinheiro −: “às vezes eu penso que eu não sou escritor, inventaram que eu sou escritor, porque eu não tenho a menor facilidade de escrever” (em entrevista ao Roda Viva, 1989). Que eram escritores, eram − o que faltava era essa noção (e que noção seria?) de trabalho.

A segunda coisa foi uma notícia que saiu − notícia assustadora − que gente com 20 e poucos anos trabalha de graça, e em jornadas exaustivas, com vistas às promoções e agraciamentos futuros. Já ouvi gente dizer (não sei se concordando, mas constatando) que roteirista novo não pode cobrar. Porque o que vale é o nome, não o roteiro. Se o aluguel é mais barato pra gente jovem, ou a comida, ou o mercado, ou o transporte, e etc e tal, concordo. Mas não é.

É uma visão positivista e da sociedade moderna, que perdura ainda hoje. Seja pra desvalorizar o processo criativo, seja para hiper-valorizar a honra do trabalho, as duas situações tem a ver com essa visão de que muito esforço, de preferência contínuo e dosado, traz uma recompensa garantida. Sou mais a vida dos gatos.

Em ritmo de aventura

Ouro Preto é um mistério. Andar por lá é se perder – geográfica e sentimentalmente, em uma cidade mágica, feita entre ladeiras e pedras, equilibrada apenas pela imponência estonteante de suas igrejas. Uma das inúmeras vezes em que me perdi por entre seus sinos e ladeiras, encontrei uma mulher de Uberlândia que vive há 20 anos na cidade e disse que até hoje não consegue entendê-la.

Ouro Preto é assim, você desce uma ladeirinha pra ver o que tem ali e o resto da vida é só subida. E a outra coisa é que você vê uma igreja láaaa longe, aí vai seguindo, vai seguindo na direção dela, vai seguindo… e quando chega, ela mudou de lugar! Mariana, a cidade vizinha, é de uma beleza mapeável e talvez só por isso não tão bonita. Tem como maior trunfo um céu de tom inigualável no mundo (não se sabe, por lá, o que acontece – faz parte do clima de mistério mineiro, de certo). Pois vivo eu num namoro entre São Paulo e Minas Gerais, cercado das montanhas e desses mistérios.

Ia embora triste, nessa última visita, segurando o choro nas horas finais antes da despedida. O ponto na “Lanchonete Du Ponto” (a bem da verdade quase um bar) me levaria de Mariana a Ouro Preto, e dali de volta para São Paulo. Na lanchonete se vende passe, os ônibus passam e a vida passa sem dó. (de Mariana a Ouro Preto a tarifa aumentou e o passe diminuiu! No bilhete vem escrito: “Vale Transporte Ouro Preto à Mariana & vice versa” (sic)!) Paramos no ponto, eu e meu bem – quando o dono do bar coloca bem alto nos alto falantes um Roberto Carlos: “De que vale tudo isso, se você não está aqui”… Nos tecladinhos tenros até semáforo, rua, montanha, nós, tudo, parecia dançar. Não contive o choro.

Depois da música não colocou mais nada, o dono do bar.

É belo o Brasil

* esse texto não é uma crítica de “O som ao redor”

“O Som ao Redor” não é um filme sobre o Recife, mas é também. É daí que vem a sua beleza, a sua força e a contundência de sua crítica. É um filme que fala de todos nós, do excesso de grades, da urbanização desenfreada – do medo da classe média e da nossa elite, da convivência em bairro e da grana que ergue. Podia ser sobre São Paulo ou sobre Salvador. Mas também não podia. É um filme contemporâneo, sobre questões contemporâneas de presente e de memória, situado (e muito bem situado) na cidade de seu realizador, Kleber Mendonça Filho.

Não achei nada de menos de “O Som ao Redor”. Nem demais. Não entendi (ou entendi bem demais) a onda de comentários sobre o filme: imperdível, maravilhoso, “um dos melhores filmes feitos recentemente no mundo” (como disse Caetano em comentário no O Globo de título “Belo é o Recife”)… É um filme em que a atuação peca pela falta, não pelo excesso – e isso é um grande, um enormessíssimo mérito. Isso traz beleza. Mas é só.

Em uma cinematografia dominada pela necessidade de sistematização, padronização, estetização (com o Estado discutindo o que é comercial…), concordo que o filme é um respiro. Justo no Brasil, onde vivemos nos perguntando por que o cinema daqui não é igual ao cinema da Argentina – porque o cinema da Argentina fala de lá, com o jeito de lá. Em outras palavras: verdade.

O Brasil tem tanta falta de verdade nos seus filmes que um filme que se mostrou verdadeiro gerou suspiros entre críticos e público. Realmente, o Brasil precisa parar de tentar fazer certo, e começar a fazer bem. De tudo, “O Som ao Redor” deixa essa lição para o cinema nacional: que na nossa tragédia e comédia, é belo o Brasil.

O risco de ficar grande, o medo de permanecer pequeno

Já correu por aí que o carnaval de São Luiz do Paraitinga terá esse ano, além de tenda fechada com abadá, atrações de funk a música eletrônica. Contrariando a tradição de um carnaval de rua e de marchinhas (marchinhas próprias, deliciosas, que falam da tradição da cidade e de seus moradores), a Prefeitura Municipal fechou um patrocínio com a Skol, que decidiu dar aos foliões uma “alternativa” à música da cidade.

A primeira vez que fui a São Luiz foi em 2005. Os blocos eram moderadamente cheios, e a praça ficava vazia. Fazíamos o percurso pulando como loucos, voltávamos à pracinha, onde caixas de som ecoavam marchinhas de outros carnavais. Em pouco a praça virava palco para os grupos, entre o coreto e a escadaria da igreja matriz. A tradição musical é tão grande que a cidade e suas bandas vivem apenas das marchinhas locais. Os blocos mantém-se os mesmos, e os “hits” de cada ano são escolhidos e lançados em um festival de marchinhas, realizado todo janeiro.

Aprendi naquele ano o que era carnaval – algo que até então não tinha vivido. Fomos os quatro anos seguintes a esse, aumentando a turma e o entusiasmo. Colecionei – e ainda coleciono – os CDs de lá, que falam sobre as ruas, a chuva, o coreto, a tradição de cada parte de São Luiz (São Luiz é pequenininha que cabe toda no coração da gente). Trouxe novos amigos, ensinando sempre a eles os mandamentos do folião. Regra número um: é proibido durante o carnaval luizense qualquer outro ritmo que não seja marchinha. E tinha fiscalização, pelos próprios foliões.

O passar dos anos trouxe naturalmente mais gente para a cidade. A [pinga] “com mel” (vendida nas janelas das casas) aumentou. Os blocos encheram. A praça lotou. Os alugueis ficaram mais caros, os campings proliferaram. A publicidade aumentou, atraindo também quem não gostava de marchinha. Encontrei uma amiga na rua: “ouvir marchinha é ótimo, mas até o final do carnaval cansa, né?” Pra gente, que ouvia os quatro dias, mais uns três meses depois, não.

Não dava mais pra pular o Barbosa, começamos a sair no Cordão da Samaritana – sem trio, banda pequena, som suave e percorrendo circuitos alternativos batendo o pé no chão. No ano seguinte nem a praça mais não funcionava. Como um aglomerado de gente, perdeu a função de ponto de encontro. A banda ficava tão longe que não dava pra ouvir – e haja perder chinelo no chão grudento e sujo da praça.

No quarto ano: os vizinhos deram pra cantar pagode, e justo a música do pimpolho. Reclamei e invadiram a minha casa. “Mas a regra aqui é só tocar marchinha!” e eles respondiam: “a gente não está no centro, não desceu pra cidade, estamos em casa”. Sintomático. E triste. O carnaval se popularizou a um ponto em que os foliões não desciam mais pra cidade. E se eles gostavam de marchinha no começo do carnaval, agora nem no começo queriam ouvir (aliás, é possível que nem tenham passado por São Luiz). De 10 mil foliões passou para 50, 80, 100 mil…

Vivemos numa sociedade em que atingir as massas importa mais que a autenticidade, em que a grana vale mais que a Cultura (aliás, acho que ninguém nem sabe mais o que é cultura, virou um termo abstrato pra preservar tradições que, na cabeça dos avançadinhos, deveriam se modernizar). Abrir o espaço para uma empresa, uma tenda com abadá, não vai trazer mais visibilidade para a cidade. Deveriam era fazer o contrário: voltar as regras mais duras, abrir um memorial – que cada visitante entenda a história do carnaval e da cidade de São Luiz. E afastar de vez quem não quer ou não gosta de marchinha. Que cada visitante, como eu no meu primeiro carnaval, como os amigos que eu levei depois, possam deslumbradamente carnavalizar-se e dizer: entendi.

São Luiz não precisa de mais investimentos para crescer. Ela precisa de mais investimentos porque cresceu demais. E precisa de coragem para se afirmar não como um grande evento internacional, mas como um pequeno carnaval regional de rua. O que São Luiz precisa é não ter medo de permanecer pequena – sob o risco de ser completamente perdida. Quando todos os grandes centros: Rio de Janeiro, Belo Horizonte e agora São Paulo, estão se esforçando por retomar um carnaval de rua arrancado de nós e trocado pelo carnaval regrado das avenidas, São Luiz do Paraitinga deve dar o exemplo. E continuar nos ensinando o que é carnaval.

Férias

Quem for a São João Del-Rey – MG não pode deixar de visitar o Memorial Tancredo Neves, ali pertinho da igreja de São Francisco de Assis. Entre objetos e fotos do ex-presidente, conta-se um tanto da história do Brasil. Somam-se aos objetos vídeos com imagens emocionantes das Diretas Já e da vigília que se seguiu à tomada de posse (contaram-se daí 38 dias até sua morte, dando lugar ao vice José Sarney) – recomendado aos fracos para emoções, como eu, que saem com lágrimas entre a esperança e o luto, de um Brasil que poderia ter sido e que não foi. À saída do Memorial, o simpático Tancredo, ele próprio, sentado em um banco – só que em bronze –  recebe sorridente os visitantes. Curiosamente, as pontas de seus sapatos e o nariz estão desgastados de tanto serem tocados.

Entre Salvador e Minas Gerais, visitei Jorge Amado, Tancredo Neves e o poetinha. Vinicius, velho, Saravá! Sempre achei essas estátuas meio indignas (não me venham com fotos com o Drummond!), mas agora estão elas a se proliferar. É um novo conceito: as pessoas se identificam com o monumento, e os homenageados podem ir direto para o instagram. No Rio de Janeiro, certa vez vi uma senhora dizer “E aí Caymmi!” ao passar pela estátua à orla da praia em Copacabana, batendo-lhe cordialmente na mão erguida. Caymmi ficou – mão erguida no ar, sorriso no rosto, eternizado no cumprimento.

A estátua de Jorge Amado, inaugurada dezembro passado em Salvador traz, além dele e de Zélia Gattai, o cachorrinho pug do casal (que mereceu homenagem em bronze) entre o acarajé de Dinha e a vista para o mar do Rio Vermelho: dá mesmo vontade de sentar para prosear. Confesso que eu mesma me maravilhei quando, ao chegar à biblioteca municipal de Belo Horizonte (ano passado, tendo visitado pela primeira vez a cidade) dei de cara com o Fernando Sabino, rodeado por seus companheiros Otto Lara Resende, Hélio Pellegrino e Paulo Mendes Campos. Encheram-me os olhos, reforçando minha visão romântica de que tudo na cidade conversa com a obra dele. (E conversa.)

Mas em termos de estátuas a mais digna é sem dúvida a de Vinicius de Moraes, que tive a chance de visitar perto da praia de Itapuã: a cadeira de bronze está lá, ao seu lado, mas o poetinha já avisa com o olhar que não quer que ninguém sente pra posar pra foto.

E saiam já da minha praça!

 

Depois eu saio também

Semana passada, então, fui dormir na casa dos meus pais. Minha mãe disse “LAURA!” e algo depois como “boa noite”, “vou abrir sua janela que está calor!” ou qualquer outra coisa que não vem ao caso. Tomei um susto daqueles, reagi com exclamações. Ela respondeu calmamente:

– Laura, o que você estava lendo?

“O VENTO fresco da madrugada entrou pela janela e veio suavemente tirar-me do sono. Sem abrir os olhos, o corpo imóvel, percebi que havia acordado. De súbito o sangue gelou-me nas veias: senti uma presença dentro do quarto. Uma presença macia, envolvente, feita de silêncio e escuridão. Abri finalmente os olhos – o silêncio se abateu sobre mim e a escuridão ficou maior. Por um instante não tive forças de me mexer e era como se eu estivesse morto, envolto em mortalha. Desfiz-me afinal dos lençóis e levantei-me de um salto, avancei precipitadamente para o interruptor da luz junto à porta. Quando meus dedos ansiosos tateavam na parede, pousaram de leve em algo frio, áspero e crispado, que vinham a ser exatamente os dedos de uma outra mão.

ESTA história evidentemente não aconteceu comigo, nem com ninguém. Acabei de inventá-la, para desafiar a sensação de insegurança que me deu de repente, ao ver-me aqui sozinho em meu quarto, em plena madrugada, escrevendo esta crônica.”

Nessa hora minha mãe entrou no quarto dizendo “LAURA!” e qualquer outra coisa que não vem ao caso.

O trecho está no livro “No fim dá certo”, de Fernando Sabino, na crônica “Viver é perigoso”. Comprei-o semana passada em um sebo, e entre “De cair o queixo” e “Sob o manto da fantasia”, aconteceu-me a coisa mais extraordinária que pode acontecer a alguém com pretensões literárias (ou quase): encontrei uma carta.

Tinha ido diretamente à estante de literatura brasileira, e pegado apenas o “No fim dá certo” – cópia muito bem conservada e que eu ainda não tenho, dois atributos raros para as publicações do Fernando Sabino (muito numerosas) em sebos. Levei-o como uma preciosidade ao caixa (a carta ao meio). A mulher olhou o código (a carta vai cair…), a mulher me olhou com um sorriso. “Esse aqui, olha lá, tem na promoção de dois a cinco reais. Não quer ver lá?” No cantinho subindo as escadas. Mas eu não queria, queria era aquele! Voltei ao caixa um pouquinho depois. “Não encontrei (não encontrei, realmente) levo esse mesmo”.

Guardei o livro aflita – com medo ainda de que a vendedora reivindicasse a minha carta. Minha. Envelopada, selada, com remetente de Milão e destinatário de Pinheiros (os selos, ambos de Milão), duas páginas manuscritas em papel de seda, em francês. Não a peguei mais, com medo de manchá-la com as mãos sujas da rua, depois de molhá-la com respingos de chuva (nesse dia choveu).

Finalmente a li, com alguma dificuldade entre o manuscrito e o francês. Quando repeti que me acontecera a coisa mais extraordinária no sebo, já anunciava o pragmatismo da minha mãe: “às vezes também não é nada”. Datada de 1999, Milão, um senhorzinho reclamando da artrite, agradecendo ao outro por ter pago um imposto, e mandando lembranças pra outra senhora, também doente. E não era. Pelo menos o livro era bom.

Melhor do que isso só quando li na contracapa de O Gato Sou Eu (aliás, livro do Sabino que na ocasião não comprei e que não tenho até hoje): “Seguinte: o Paulo vai ligar sem ficha. Você espera 5’ e sai. Depois eu saio também”.