1997 – Terceira série, foi-me dada a tarefa de tirar fotos de placas com emprego inadequado da crase. Saímos de casa, eu e meus pais, sem uma câmera. Reclamei. Chorei. Esperneei. No caminho de São Paulo a Atibaia, anotei os inúmeros erros num indigno bloquinho, à mão. Com crase. Segunda-feira: fui a única da classe a fazer o exercício.
No meio desse mês tive uma experiência dessas que nos trazem uma consciência superior das coisas, do mundo… Uma professora muito querida – e de literatura – foi convidada a falar em um evento de uma editora. A outra convidada: Lygia Fagundes Telles.
Aprendi metáfora com “Venha ver o pôr-do-sol e outros contos”, dela, na oitava série, coisa de que já não me lembrava. Metáfora é um tipo de aprendizado engraçado de explicar: não é como uma equação, que você aprende e sabe quando aprendeu, como aprendeu, e mais principalmente o que aprendeu. É quase uma equação da alma: uma vez aprendida passa misteriosamente a fazer parte de você.
Então eu tinha uma situação muito especial dentro dessa minha lembrança e constatação: tinha de um lado a Lygia Fagundes Telles, em pessoa, discursando sobre literatura e sua vocação, e de outro minha professora falando sobre subjetividade e inteligência literária dos alunos.
Lygia Fagundes Telles, formada em direito e educação física, é desses seres superiores que entendem que a vida é mais que a vida, que a realidade não é uma só e que somos compostos por tudo que fazemos com prazer. Sob o tema vago “inspiração literária” (e a bem da verdade não precisava ter tema algum), falou de sua vocação, numa dimensão muito interna, quase totalmente descolada de resultado, ou mesmo de talento. “Por que eu não fui bailarina? Por que eu não fui jurista, como minha mãe queria? Por que eu não fui pianista, como a minha mãe? Por que eu segui na minha vocação. E acertei” – dizia com um gesto enérgico e firme no ar.
Com ares de tranquilidade e força, contou que vem de uma linhagem de avô rico, pai pobre e neto miserável. Sendo ela própria o neto. “Meu avô era dono da rua Fagundes na Liberdade, tudo muito chique, meu pai, era jogador. Todo dia chegava em casa falando: hoje perdemos, mas amanhã a gente ganha.” Uma coisa terrível, que ela contou com um sorriso: “Não é maravilhoso isso?” E repetia, risonha ante a plateia apreensiva “hoje perdemos, mas amanhã a gente ganha. Isso eu levei pra vida.”
Do fundo do âmago, expondo-se inteiramente a nossos olhos nus, dizia enérgica e repetidas vezes: “eu acertei na minha vocação.” Deslumbrantemente passou a falar sobre Deus. “Deus é uma dúvida. Deus é um mistério, a vida é um mistério e estou vivendo esse mistério da melhor forma que posso.”
1998 – Tarefas de casa: tropismo e decomposição. Tropismo é o movimento de curvatura feito pelas plantas orientado em relação a um agente externo. Em biologia e ecologia, decomposição é o processo de transformação da matéria orgânica em minerais. Esqueci de fazer. No fim de semana antes da entrega, minha mãe cortou um buraco numa caixa de papelão e puxou uma planta para fora; depois colocou um ossinho finíssimo de galinha no vinagre. Ele rapidamente amoleceu.
Nessas últimas eleições fui submetida a uma pesquisa de intenção de voto – um privilégio, tendo em vista a amostragem utilizada (coisa de 1204 para os mais de oito milhões aptos a votarem em São Paulo). Foi tudo fácil, em termos políticos. Respostas pensadas e repensadas, previsões de segundo turno absurdas para medir meu índice de rejeição a cada candidato negado, previsões de supostos apoios de um ou outro partido. Respondia a tudo com uma habilidade e rapidez impressentida. Perguntou minha religião e eu disse nenhuma. Perguntou se acredito em Deus. E eu… Balbuciei até que o pesquisador marcou ateia e prosseguiu. Pesquisa eleitoral: mesmo com a profusão de candidatos em São Paulo, a pergunta que me deixou mais em dúvida foi um inesperado: você acredita em Deus?
1999 – A cena mais impressionante da minha vida. Sala de aula, quinta série. A professora de geografia propôs para nós uma questão. À primeira alternativa (eu julgava certa), levantei a mão. Outros poucos que iriam responder baixaram o braço ao ver que a grande maioria da classe não escolheria a primeira. A sala já se alvoroçava em um “errrrrhhhh” tímido mas sonoro, enquanto eu mantinha, solitária e impávida, minha mão no ar. À segunda alternativa, o resto da sala inteira levantou a mão, tranquilizados pelo anonimato em sua escolha. A resposta certa era a minha (seguiu-se caloroso silêncio). Ao final da aula, a professora me chamou para conversar. Elogiou-me não pela resposta certa, mas por ter mantido minha mão erguida. O resto da minha vida inteira foi uma tentativa desesperada de resgatar essa confiança.
À oitava série, em 2002, quando aprendia metáfora, lancei essa para a minha professora de redação: “quando eu crescer eu quero ser cronista, você acha que eu consigo?” Não me lembrava mais disso quando nesse ano, passados dez anos da oitava série, decidi que escrevo. Não me lembrava mais disso, nem de ter aprendido metáforas.
Então eu tinha uma situação muito especial: de um lado minha professora querida de literatura falando sobre subjetividade, sobre inteligência literária, do outro Lygia Fagundes Telles, impondo-se sobre nós um mistério velado. A vida é viver esse mistério, é acertar na vocação.
Essa história toda me lembrou uma professora (outra, mas também de redação), a quem disse depois que eu saí do colégio: “sabe, eu quero mesmo ser cineasta” e ela prontamente respondeu “eu já sabia”. E eu pensei: “como, se eu não?”
A gente sabe. A gente sempre sabe.
Nota (pós texto) em caso de nova pesquisa eleitoral, ao ser perguntada se acredito em deus, responderei: vivo esse mistério que é Deus (não sei se é uma questão de acreditar).
outubro/2012