Bolsonaro essa semana transferiu por decreto o Conselho Superior de Cinema para a Casa Civil, estuda realizar a mudança da Ancine para Brasilia (um custo aos cofres públicos) e cogita seu fim. Tudo por ter lido um texto que denuncia produções audiovisuais supostamente inadequadas realizadas com dinheiro público. Para coroar a semana, deu um discurso público em que diz que se não puder ter filtro na produção, fechará a agência. Não, Bolsonaro não está chocado com o conteúdo produzido. Aliás, nem é à toa que um blogueiro resolveu levantar dados e pesquisar produções da Ancine, em texto que por acaso chegou aos olhos do presidente (que tem tão poucos afazeres para poder ler blogs e com isso pautar a agenda política do país). Trata-se de uma construção de discurso, aliás, muito bem amarrado. Mas que, felizmente para nós, não diz respeito à realidade da produção audiovisual no Brasil.
Ao falar em “filtro”, Bolsonaro propõe um controle ideológico sobre as produções que nunca antes existiu e, ao condicionar sua visão ao fechamento ou não de um órgão regulador do Governo, age com autoridade incompatível com a democracia. Mas, aos ouvidos do público que desconhece o funcionamento da Ancine, o que se escuta é que o dinheiro está sendo usado de forma inadequada, ou, pior, para produções inadequadas. Quem acompanha os vais e vens da política do audiovisual sabe que há um plano claro desde o Governo Temer para minar a credibilidade da Agência Reguladora do Cinema e liberar assim sua verba para outras áreas. O que não se conseguiu fazer criticando seu funcionamento, que é modelo de eficiência na gestão pública, nem através de corrupção, uma vez que o dinheiro do fundo é vinculado diretamente à exploração do audiovisual pelas empresas contribuintes.
A resposta imediata do setor (não sem razão) foi “não vai ter filtro, vamos continuar produzindo”. É óbvio que quando respondemos isso, nos referimos ao filtro ideológico, ao controle por paixões e não por critérios artísticos e comerciais, controle esse que é nocivo a toda a cadeia produtiva ― e à democracia. Mas soa como se estivéssemos justificando essas supostas produções inadequadas, defendendo que a agência siga impune e sem controle. Mordemos a isca. A realidade é, como sempre, menos sensacionalista e mais entediante. E a verdade é que já temos filtros, e muitos!
O formulário padrão da Ancine é dividido em Aspectos Artísticos e Adequação ao Público, Qualificação Técnica do Diretor e Roteirista, Capacidade e Desempenho da Proponente e Plano de Promoção e Difusão da Obra. Cada um desses itens é subdividido em vários outros, que funcionam como perguntas que devem ser respondidas pra deixar o mais claro possível qual obra vai ser produzida, pra quem, e se o proponente é capaz de fazê-lo. São eles: Proposta de Obra Cinematográfica, Público-Alvo do Projeto, Estrutura e Gênero Dramático, Linguagem e Procedimentos Narrativos, Perfil dos Personagens, Cenários e Locações, Concepção Visual, Argumento, Currículos da equipe, Estrutura da Proponente, Apresentação e currículo resumido da produtora, Infraestrutura e equipamentos disponíveis, Quantidade de funcionários fixos e colaboradores, Estratégia de Difusão, Parcerias para promoção, difusão e distribuição da obra, Ações Multi-Plataforma e Outras Formas de Difusão e Cronograma de Execução Física (e cada um desses itens ainda tem um subtítulo explicando o que deve ser apresentado)*. Além disso entregamos um Orçamento detalhado, que deve ser seguido à risca na realização do projeto, com comprovação minuciosa através de notas fiscais. Só nisso já movimentamos várias áreas, com advogados, contadores, produtores, roteiristas e equipe técnica, para colocar o projeto de pé e buscar seu financiamento.
Se lendo já é muita coisa, imagina escrever esse conteúdo todo com conhecimento do que é cada coisa e aplicado ao seu projeto. E tudo isso é levado em consideração na hora da seleção, que é feita por técnicos e agentes da área audiovisual (dois pareceristas independentes por projeto), que medem, entre outras coisas, se a obra proposta está adequada ao público e ao circuito, se o orçamento bate com o que vai ser realizado, se há relevância no projeto proposto e se o proponente tem capacidade de realizá-la. É uma análise técnica detalhada, a partir de um projeto imenso, que é enviada para cada um dos proponentes para justificar sua aprovação ou não. Mas nunca, jamais, a escolha é feita por gosto pessoal ou ideologia. Isso permite que sejam realizados, na mesma cadeia produtiva, uma série sobre modelos trans e um filme da Igreja Universal. Desde que cada um tenha justificado seu público, seu potencial, sua qualidade artística e sua capacidade de produzir. É um filtro, se assim quiserem chamar. Um filtro com furinhos bem pequenos, que mesmo pra quem é da área é difícil de atravessar.
A fala do Presidente não passa de retórica para fazer crer ao público que a agência investe em filmes inadequados, e abrir com isso espaço para usar o dinheiro do Fundo Setorial do Audiovisual em outras áreas do governo, quando a seleção é criteriosa, feita por profissionais técnicos da área, e nunca envolveu interferência no conteúdo. Ao contrário, é possível encontrar projetos de diversos espectros e ideologias entre os aprovados no fundo, o que garante a potência do setor como gerador de renda para a economia e com qualidade artística que tem sido reconhecida nos principais festivais do mundo. Defender o enfraquecimento da Ancine nesse momento é condenar de morte um setor que gera empregos, movimenta a economia e tem um modelo de negócios invejável para outras áreas do governo, retornando o investimento em produtos e geração de renda para o país.
Então a próxima vez que falarem em filtros, sejamos consistentes: filtros? Já temos. É o que faz nosso audiovisual forte e potente como indústria e como veículo para fortalecer a identidade do Brasil.
* para quem quiser conferir, é só entrar no site do Fundo Setorial do Audiovisual, em chamadas públicas, e dar uma olhada nos anexos exigidos em cada uma. Ah, sim, tudo isso é público e fica disponível no site da Agência, inclusive com os links para as leis que regem seu funcionamento e transparência em relação aos valores de financiamento.